Jards Macalé e João Donato se unem em disco despojado que celebra a bossa nova

'Síntese do Lance' marca o primeiro encontro entre o violão de um e o piano do outro

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Rio de Janeiro

João Donato e Jards Macalé estão nus. No meio da mata, com as barrigas de fora e as vergonhas cobertas por folhas, eles posam para a capa do álbum "Síntese do Lance", que chega às plataformas digitais agora. "Esse nude quer dizer despojamento. Voltamos ao princípio de tudo. Tem uma frase engraçada, a gente nasce nu e vive o resto da vida disfarçado", brinca Macalé.

Os músicos realizaram seu primeiro encontro discográfico num estúdio da região serrana do Rio de Janeiro. João Donato, de 87 anos, e Jards Macalé, de 78, se acompanhavam de longe, circulavam na mesma cidade, tinham amigos e ídolos em comum (e incomuns), como Tom Jobim e João Gilberto, mas só agora selaram uma parceria, a convite da gravadora Rocinante.

Os músicos João Donato e Jards Macalé, que lançam juntos o disco 'Síntese do Lance' - Leo Aversa/Divulgação

Produzido por Marlon Sette, Sylvio Fraga e Pepê Monnerat, o LP de dez faixas traz só uma parceria da dupla, "Côco Táxi". As outras são temas instrumentais dos compositores ou parcerias com Ronaldo Bastos, Joyce, Fraga e Sette. Todos os músicos são incorporados à sonoridade do piano de Donato.

Na tela do computador, cada um em sua casa, os artistas falam sem pompas da experiência. Por contágio, a extroversão do álbum se transfere para a conversa exuberante no meio da tarde. Donato acha "muito natural" o encontro tardio de seu piano com o violão de Macalé.

"Você quer ver uma coisa estranha?", questiona o pianista. "Eu fui noivo de Dolores Duran, que fez música com Tom Jobim, com Ribamar, e comigo não fez música nenhuma. Nós namoramos três ou quatro anos. Coisa estranha. Eu fiz música com Antonio Carlos Jobim, mas não fiz com Vinicius."

Com Macalé foi diferente. O disco levou às últimas consequências suas pelejas solitárias com a música de Donato. "Eu botava na vitrola. Acompanhava João há muito tempo, sozinho, no meu violão. Quando chegou a hora, eu disse ‘enfim, nós’. Fiz um teminha instrumental chamado ‘João Duke’. Eu sabia que ele gosta muito do Duke Ellington." Mas, alto lá, "quem não gosta de Duke?", pergunta Donato, o "visconde da bossa nova", como foi chamado na Inglaterra.

"Síntese do Lance", de Sette e Donato, adaptada de um ponto de umbanda, traduz o barato musical do álbum. "É no morro sim/ Que se tira uma onda/ É sentado na pedra/ Queimando uma coisa/ Jogando uma ronda."

Ela nomeia o disco, mas Donato só soube disso depois de uma pergunta do repórter. "Eu não sabia que o nome do disco era esse, não. Tô sabendo agora através do seu comunicado. Síntese do lance! É o resumo da ópera." Macalé vai em apoio, "a soma de todas as notas".

Dotado de poesia natural, Donato se expressa numa linguagem a caminho de virar música. "Côco Táxi" nasceu de seu passeio de triciclo nas ruas de Havana, em Cuba. Aos solavancos, veio a ideia "côco táxi, côco louco". Macalé pegou o mote e seguiu em frente. "Côco táxi, côco louco/ É nesse balanço louco que eu fico solto."

Um recuo à travessia cubana. "O táxi parece que vai virar, a água do mar passa e quando a gente volta para casa fica com essas lembranças. Por onde a gente passou, tem as coisas mais ou menos, as coisas ruins e as coisas boas. As coisas boas a gente lembra e faz música", diz Donato.

Empolgado, falando mais que Macalé, ele ainda tem a palavra. A alegria, sim, a alegria emanada desse encontro e de suas músicas blindadas contra a tristeza contemporânea.

"Disco chama-se record em inglês. ‘Record’ lembra recordar. E recordar é viver. A música traz uma lembrança dos tempos de criança. As lembranças mais gostosas da vida são as de criancinha, no colo da mamãe, chupando aquele peito gostoso, levando aquele beijinho na cara, as pessoas passando a mão na gente. Aquilo nunca mais acontece. ‘Ai, que bonitinho! Deixe eu pegar um pouquinho!’ Fica na lembrança."

"É a síntese do lance!", resume Macalé.

"Um Abraço do João", de Macalé e Joyce Moreno, celebra João Gilberto, posto na mesma dimensão dos mestres Garoto, Luiz Bonfá e Tom Jobim.

"Se a bossa nova tinha um rei, era ele. Jobim, como compositor. Mas o rei era João Gilberto. Tanto que ele nem aparecia nos lugares. Era místico", conta Donato, o visconde. "João era como se fosse uma tartaruga ninja. Ele aparecia e desaparecia. Tinha uma hora em que eu estava em perigo, em aflição, e ele vinha como se fosse uma ajuda divina."

Macalé completa. "E, quando ele aparecia, aparecia na hora certa". Um dos músicos centrais da contracultura brasileira, o compositor carioca analisa o contraste entre o disco radioso e o país triste com a política e a pandemia. "Até 1965 eu vivi um momento de Brasil totalmente utópico", diz Macalé. A essa altura, os olhos de Donato estão distantes. Flutuam.

"Tô boiando aqui. O que é utópico? Sério", pergunta Donato.

"Um sonho", explica Macalé.

"O que não é a realidade?"

"O vir-a-ser. O desejar."

"Eu gostaria que o Brasil fosse assim?"

"Que o mundo fosse assim."

"Aí eu não sei. Não vejo nada aí", desiste Donato.

"Você disse tudo", sorri Macalé. "A essa altura do campeonato, eu não vejo nada."

"A gente está num momento muito grave no Brasil", Macalé retoma. "É o desmantelamento de um Brasil utópico, que já foi sonhado por muitas pessoas bacanas. Darcy Ribeiro já é um sonho de Brasil que pode dar certo. Um Brasil saudável. O Brasil, neste momento, está profundamente doente. Aí é que está o valor desse disco. É um momento de saúde num país doente".

João Donato se desvia de enigmas. Ele compara a alquimia entre dois músicos com os carros passando em lugares certos, a chuva caindo na hora certa, o avião passando no momento certo. Essas belezas acontecem, e ele não sabe bem por quê.

Síntese do Lance

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