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'Lar em Chamas' tem um estilo tão imaturo quanto seus personagens

Romance da paquistanesa Kamila Shamsie investe em quatro narradores diferentes, mas quase todos soam fora do tom

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Lar em Chamas

  • Preço R$ 59,90 (288 págs.); R$ 42 (ebook)
  • Autoria Kamila Shamsie
  • Editora Grua
  • Tradutora Lilian Jenkino

Isma, muçulmana de origem paquistanesa nascida na Inglaterra, consegue uma bolsa para estudar nos Estados Unidos. Sua mãe e avó estão mortas. Seu pai jihadista também está morto, e sua lembrança é um tabu doloroso na família.

Seus irmãos Aneeka e Parvaiz, os gêmeos que Isma criou como se fossem seus filhos, agora estão por conta própria. Aneeka continua em Londres, e Parvaiz, o que deixa as duas irmãs perplexas e furiosas, também se torna jihadista.

capa de livro
Capa do livro 'Lar em Chamas', da escritora paquistanesa Kamila Shamsie - Divulgação

Em Amherst, Massachusetts, Isma conhece Eamonn, filho do Ministro do Interior britânico —um homem muçulmano que passou a vida renegando sua origem a fim de abrir espaço na política, de quem a família de Isma nunca gostou. Há algo no ar entre os dois jovens, que, no entanto, nunca chega a passar de uma possibilidade.

Ele então volta à Inglaterra, onde inicia um romance com Aneeka. Aneeka, que de início o seduziu justamente por conta do cargo que o pai de Eamonn ocupa —com a intenção de salvar a pele do irmão gêmeo—, descobre que de fato o ama.

As famílias mantêm posições e valores distintos, mas os filhos se aproximam e descobrem uma afinidade insuspeita em que um amplia e altera o modo de pensar do outro: já deu certo antes, pode dar mais uma vez, certo? Pode, mas não aqui. “Lar em Chamas” apresenta quatro narradores cuja voz varia entre o muito ruim (Isma) e o passável (Parvaiz).

As questões morais complicadas em jogo não combinam com a superficialidade com que são demarcadas e abordadas. Isso porque os flertes juvenis do início do livro dão o tom que vai continuar por várias páginas —o de um filme adolescente genérico.

A artificialidade da prosa é mais visível nos três personagens que levam vidas razoavelmente comuns: Isma, Eamonn e Aneeka. É como se o próprio estilo da autora fosse por si só uma espécie de franquia da Starbucks, onipresente e padronizada.

Quando o cenário é Amherst ou Londres, Shamsie se esmera na tentativa de criar interações repletas de diálogos pretensamente sagazes e de gestos que deveriam passar por corriqueiros —mas que não são nada além de literatura ruim, mais um pastiche de uma narrativa do que propriamente uma narrativa. Num café decorado com samambaias, Isma pode ser vista “estalando a língua contra os dentes em um protesto autopiedoso”.

Shamsie tenta —e às vezes consegue— encontrar uma voz consistente para alguns dos personagens. É o caso de Parvaiz, que, ávido por uma figura paterna, carente de propósitos e de respostas, se sente acolhido pelos jihadistas que pouco a pouco o cooptam para os bastidores da luta armada na Síria. Dizer que Kamila Shamsie se inspira em Zadie Smith é dizer pouco, embora sua escrita não alcance, aqui, a mesma força que a da autora de “Dentes Brancos”. A de Shamsie é por vezes tão tateante, clichê e juvenil quanto os personagens a que procura dar vida.

mulher com roupão
A escritora de origem paquistanesa Kamila Shamsie, autora de 'Lar em Chamas', em ensaio fotográfico dos 20 melhores jovens escritores britânicos eleitos pela revista literária Granta em 2013 - Nadav Kander/Divulgação

A parte de Parvaiz é de longe a melhor do livro, e a única responsável por salvá-lo de ser uma nulidade completa. Mas a complexidade bem elaborada é um vislumbre fugaz, e a autora parece mais à vontade com o rame-rame superficial e cheio de chavões dos outros três narradores.

A voz da personagem Antígona, aqui recriada num romance contemporâneo em quase tudo medíocre, soa incrivelmente fora do tom. A releitura parece ainda mais esganiçada e caricata quando se considera as partes anteriores, com tudo o que há nelas de lugar-comum.

Imaturidade parece, no fim das contas, a palavra ideal para definir “Lar em Chamas”. É imaturo no estilo, imaturo nos caminhos óbvios que escolhe trilhar e imaturo na imprudência de apostar em uma versão mambembe de uma personagem tão bem cristalizada no imaginário da maioria dos leitores quanto Antígona.

A complexidade do tema de “Lar em Chamas” acaba diluída nas páginas constrangedoras em que o que se tem é sobretudo um romance açucarado, e em que o mais importante — a ambiguidade da posição de cada um dos personagens, que, se bem elaborada, renderia uma narrativa rica e intricada — acaba esvaziada para dar lugar a uma trama que é quase toda de consumo fácil.

Entre a sensação de estar protegido (Eamonn) ou ameaçado (Isma, Aneeka) pelo Estado, entre a decisão de seguir ou não uma tradição, entre a opção por uma suposta e ilusória lealdade filial havia — o que a trama deixa apenas entrever — uma série de possibilidades narrativas abertas. Toda gravidade se perde num mar (aí sim) profundo de prosa ruim.

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