Descrição de chapéu The New York Times

Legado nazista assombra novas galerias de museu renomado da Suíça

Acervo exibe coleção deixada por industrial suíço que comprou obras de arte roubadas pelo regime

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Catherine Hickley
Zurique | The New York Times

Com a inauguração de um imponente anexo, o Kunsthaus, em Zurique, se tornou o maior museu de arte da Suíça. O vasto edifício novo, em formato de cubo, foi projetado pelo arquiteto britânico David Chipperfield e fica diante do original em uma praça central, mais que duplicando o espaço do museu para exposições.

Um átrio arejado conduz a um jardim recentemente criado e as escadarias de mármore que levam os visitantes a galerias espaçosas, banhadas de luz natural filtrada. No segundo pavimento, eles podem admirar obras-primas de Monet, Cézanne, Gauguin, Van Gogh e Degas.

Essas peças um dia pertenceram a Emil Georg Bührle, um industrial suíço que morreu em 1956, mas cujo legado tenebroso lança uma sombra sobre a inauguração do novo anexo, que custou US$ 220 milhões, cerca de R$ 1,25 bilhão.

Embora fosse sabido há muito tempo que Bührle fez fortuna vendendo armas à Alemanha nazista e que ele comprou obras de arte roubadas por aquele regime de seus legítimos proprietários, não param de surgir novas revelações.

Em agosto, a revista suíça Beobachter noticiou que Bührle empregava centenas de meninas e mulheres com históricos complicados em condições de trabalho próximas da escravidão, na Suíça, e isso até a década de 1950. Neste mês, a revista noticiou que em 1941 Bührle arrematou duas tecelagens suíças a preços de pechincha depois que seus proprietários anteriores, judeus alemães cujas propriedades haviam sido "arianizadas" por meio de vendas forçadas, fugiram para a Argentina.

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Novo anexo do Kunsthaus de Zurique, que irá exibir obras de grandes nomes das artes plásticas, como Monet e Van Gogh - Divulgação

E, duas semanas antes da inauguração do novo anexo, foi lançado um livro do historiador Erich Keller sobre o Kunsthaus. Traduzido, o título em alemão quer dizer "o museu contaminado".

"É difícil", disse Christoph Becker, o diretor do Kunsthaus, depois de responder a diversas perguntas de jornalistas em uma entrevista coletiva. "Mas esse debate é uma coisa boa."

As conexões entre Bührle e o Kunsthaus remontam a 1940, quando o empresário se tornou membro do conselho do museu. Ele bancou a construção de uma extensão anterior, concluída em 1958. Um busto e uma placa colocados na entrada de um dos salões de exposição, que leva seu nome, celebram suas contribuições anteriores.

Agora, 203 obras de arte que são propriedade da Foundation E. G. Bührle Collection, instituição criada por sua família depois da morte do empresário, ingressaram na coleção do Kunsthaus sob um acordo de empréstimo com duração de 20 anos. Cerca de 170 delas estão em exposição no novo anexo.

Em entrevista recente, Keller disse que o Kunsthaus jamais deveria ter aceitado a oferta da fundação de colocar essas obras em exposição. "É uma coleção construída com dinheiro de vendas de armas, de trabalho escravo, de trabalho infantil", ele disse.

Nascido em 1890 na Alemanha, Bührle serviu no exército de seu país durante a Primeira Guerra Mundial, e em seguida começou a trabalhar como fabricante de ferramentas na cidade de Magdeburg. Ele se mudou para Zurique em 1924 para dirigir uma operação semelhante, na qual patenteou e fabricou canhões antiaéreos para exportação a todo o planeta.

Durante a Segunda Guerra Mundial, sua empresa produziu armas tanto para os aliados quanto para a Alemanha nazista, e Bührle se tornou o homem mais rico da Suíça. Ainda que os aliados tenham posto sua empresa em uma lista negra depois da guerra, o boicote foi suspenso em 1946, e o negócio continuou a se expandir.

Entre 1936 e 1956, Bührle adquiriu mais de 600 obras de arte —algumas das quais roubadas pelos nazistas de proprietários judeus. Em 1948, a Suprema Corte da Suíça ordenou que ele restituísse 13 peças.

Quando obras-primas impressionistas de sua coleção foram exibidas na Galeria Nacional de Washington em 1990, o crítico Michael Kimmelman escreveu no New York Times que o museu "jamais deveria ter realizado" a exposição. "O ponto não é que essas obras não deveriam ser vistas, mas sim o de que elas deveriam ser vistas em um contexto significativo", ele escreveu.

Em uma da dúzia de galerias dedicadas à coleção Bührle no novo anexo do Kunsthaus, um painel fala da carreira do industrial e da proveniência de suas obras de arte, com textos, documentos e fotos. Antes da abertura da mostra no Kunsthaus, funcionários do governo municipal e do governo regional de Zurique solicitaram um estudo à Universidade de Zurique, publicado no ano passado, examinando a biografia de Bührle e as origens da fortuna que ele usou para comprar suas obras de arte. O conselho do museu inclui representantes do governo municipal e do governo regional.

Mas a responsabilidade pela pesquisa sobre a proveniência das obras individuais não era parte do escopo do estudo. A própria Fundação Bührle começou a conduzir pesquisas sobre proveniência em 2002, e os resultados são publicados em seu site, embora não exista um histórico detalhado de propriedade nos painéis que identificam as peças no Kunsthaus.

'Paisagem', quadro de Paul Cézanne de 1879
'Paisagem', quadro de Paul Cézanne de 1879, do acervo da Emil Bührle Collection; o site da fundação não menciona que seus proprietários anteriores, Martha e Berthold Nothmann, eram judeus, nem deixa claro que ele saíram do país para fugir da perseguição - Reprodução

Lukas Gloor, diretor da Fundação Bührle, declarou em entrevista que "hoje, podemos ter certeza de que não existem peças de arte roubadas na coleção, no sentido mais estrito do termo", mas acrescentou que "não descartamos a possibilidade de que novas informações possam vir a surgir".

Em seu livro, Keller expressa dúvidas sobre as pesquisas da fundação e classifica os novos relatórios sobre proveniência publicados em seu site como "um filtro que oculta fatos decisivos".

Ele menciona como exemplo "Paisagem", quadro de 1879 do pintor Paul Cézanne. O site da fundação não menciona que seus proprietários anteriores, Martha e Berthold Nothmann, eram judeus; diz apenas que eles "deixaram a Alemanha em 1939", em lugar de explicitar que eles saíram do país para fugir da perseguição.

"Campo de Papoulas Perto de Vétheuil", de 1880, trabalho de Claude Monet, é outra peça contestada. Bührle adquiriu o quadro em 1941, em uma galeria suíça, por menos de metade de seu valor de mercado, de acordo com um relatório do historiador Thomas Buomberger em 2012. A pintura havia sido posta à venda por Hans Erich Emden, filho de um magnata judeu alemão das lojas de departamentos cujas propriedades na Alemanha foram expropriadas pelos nazistas depois que ele se mudou para a Suíça.

A fundação rejeitou uma reivindicação dos herdeiros de Emden, argumentando que a venda não foi causada pela perseguição nazista. Gloor disse que os casos em que judeus alemães venderam propriedades quando estavam exilados na Suíça não devem necessariamente ser considerados como vendas forçadas.

"A Suíça não estava ocupada pelos alemães, não havia perseguição na Suíça", ele disse. "As pessoas eram livres para vender ou não."

Com a transferência da coleção para o Kunsthaus, a responsabilidade pela pesquisa sobre a proveniência das peças passa a ser do museu, embora qualquer decisão quanto a restituições deva caber à fundação, como proprietária, disse Gloor. Ele acrescentou que os pesquisadores receberam acesso irrestrito aos arquivos da fundação, que estão depositados no museu.

Gloor disse que sua esperança era que estudiosos independentes avaliassem o trabalho da fundação. "Fico feliz em responder a perguntas de colegas e os incentivo a cavar mais fundo", disse.

Corinne March, a prefeita de Zurique, declarou em entrevista que sua esperança era que o anexo do Kunsthaus reforçasse os atrativos da cidade como destino cultural. "Zurique sempre foi percebida como centro financeiro e bancário", ela disse. "Mas seu perfil como centro cultural vem crescendo, nos últimos anos. E esse projeto é um marco histórico."

Ela disse que a pesquisa biográfica conduzida pela universidade e a pesquisa de proveniência conduzida pela Fundação Bührle têm seu apoio e descreveu a fundação como pioneira na pesquisa do histórico de propriedade de obras de arte, na Suíça.

"É importante mostrar os quadros, mas também é importante que os apresentemos de maneira exemplar, o que significa que é preciso confrontar os aspectos problemáticos", ela disse. "Não creio que esse debate vá terminar só porque o anexo foi inaugurado."

Tradução de Paulo Migliacci

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