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Livro de pai de Sérgio Camargo analisa Brasil negro sem exotismo

'O Carro do Êxito', publicado em 1972, ganha nova edição que recupera rara crítica às condições da vida negra nas cidades

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Luiz Mauricio Azevedo

Crítico literário e pesquisador na FFLCH/USP, é autor de "Estética e Raça: Ensaios sobre a Literatura Negra" (Ed. Sulina)

O Carro do Êxito

  • Preço R$ 49,90 (144 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autor Oswaldo de Camargo
  • Editora Companhia das Letras

Nos últimos dois anos, a partir da chegada dos estilhaços ideológicos do Black Lives Matter por aqui —e com o triunfo do pragmatismo contábil sobre os argumentos racistas de certos empresários—, muitas editoras se voltaram para a produção negra.

Mesmo que qualidade estética seja um tema considerado ultrapassado e os debates mais lucrativos ainda envolvam as palavras empoderamento, lacração e potência, uma parte significativa da boa literatura afro-descendente recebeu uma improvável luz.

O escritor Oswaldo de Camargo - Raphael Aguiar/Arquivo Pessoal

É esse o caso de "O Carro do Êxito", de Oswaldo de Camargo, livro de 1972, que retorna publicado agora pela Companhia das Letras, e que tem prefácio de Mario Augusto Medeiros da Silva, professor da Universidade Estadual de Campinas —além das luxuosas ilustrações do multipremiado Marcelo D’Salete.

Camargo é reconhecido como uma forte liderança negra, uma inescapável intelectualidade cuja atuação remonta aos primeiros momentos da formação literária negra. Contudo, porque o mundo é dissonância e contradição, seu nome acabou ganhando notoriedade popular por ser o pai de Sérgio Camargo, atual diretor da Fundação Palmares, numa situação que beira a narrativa trágica.

Ultimamente, toda vez que se menciona o nome do pai, é o filho quem aparece. Toda vez que se fala de Oswaldo, é sobre Sérgio que ouvimos. A atuação corrosiva de Camargo, o filho, parece contrastar com a biografia construtiva do pai. E é um alerta sobre os poderes nocivos da sobrenomecracia, fenômeno ao qual a comunidade negra se julgava imune.

Dividido em duas partes, "Menino do Oboé" e "Chão de um Preto", esse volume de contos dialoga com "O Carro da Miséria", poema célebre do também autor negro Mário de Andrade, no qual a brasilidade abunda em tons sinfônicos, harmoniosos e afirmativos.

Mas, ao contrário de Andrade, Camargo oferece um painel de variadas desgraças materiais, refletidas em múltiplos achados linguísticos. No conto "Esperando o Embaixador", por exemplo, há um debate doloroso sobre a difícil tarefa de respeitar a ancestralidade sem perpetuar suas naturais limitações conservadoras.

Já em "Cadê o Oboé, Menino, Toca Aí o Oboé", surge uma alegoria radical sobre o processo de criação e os efeitos nocivos que a necessidade de ascensão social opera em artistas negros. De resto, durante todas as 14 narrativas breves, há a necessidade de que o negro se prove portador de uma capacidade inédita, num exercício que por vezes aniquila o prazer de tocar, de ascender, de amar, de crer e, em última medida, de viver.

Sob muitos aspectos, sua obra literária pouco tem a ver com aquilo que viceja por aí. Numa sofisticada mistura de tradição católica e Brasil negro, ele fornece uma rara crítica às condições da vida negra nas cidades, não a partir do que é oferecido aos personagens, mas por meio da exploração intelectual do que os personagens são capazes de elaborar tendo como ponto de partida suas próprias capacidades abstrativas.

Nessa obra, a dicção negra não aparece como fetiche ou embalagem exótica das coisas universais sempre ditas. Aqui, a coisa se processa na ordem do intelecto íntimo, do embate do "eu-para-mim". A gramática particular dos negros se torna a gramática particular de cada negro, onde eventuais falhas na sintaxe são bloqueadas para que não haja riscos de sufocamento da semântica.

Através do processo de resgate do ideal radical —alerta para spoiler— de que pessoas negras são seres humanos, o autor nos arrasta para sua experiência estética de força, delicadeza e coragem. Ao longo dos contos de "O Carro do Êxito" não há condescendência, tampouco celebração barata da representação étnica. E é daí que resulta seu valor estético avassalador.

É um poderoso antídoto contra o esmagamento de nossos ossos em chãos de supermercado ou contra o uso de nossas ideias como adubo de um solo que nos consome por dentro.

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