Livro que afrontou ditadura em Portugal segue uma 'arma feminista' ainda hoje

Cinquenta anos após primeira publicação, 'Novas Cartas Portuguesas' permanece incomodamente atual

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Andreia Friaças
Público

"Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um governo que eles atacam. Se a mulher se revolta contra o homem, nada fica intacto.” Esta é uma das muitas passagens que estão assinaladas, com post-it ou notas de cabeçalho, no exemplar que Ana Cunha guarda de "Novas Cartas Portuguesas".

O livro está “cheio de impressões”, mas as notas são recentes. Foi em 2020 que Cunha conheceu esta obra, “por mero acaso”, numa sessão de leitura, no Porto. “Fiquei em delírio me esforçando para memorizar algum bocadinho para depois pesquisar na internet”, graceja. Não tardou até descobrir de que livro se tratava e de compreender “o monumento escondido” que tinha diante de si. Acabou por pedir a obra como presente para o seu aniversário de 22 anos.

Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, autoras do livro, no Tribunal de Boa-Hora - Museu do Aljube

Para a atriz Teresa Coutinho, o livro já é uma companhia antiga. Chegou por sugestão de uma amiga da sua mãe quando tinha 16 anos. “Simone de Beauvoir ou Virginia Woolf são essenciais, mas tão importante quanto é ler 'Novas Cartas Portuguesas'”, disse a amiga. Desde então, a obra atravessou todas as fases da sua vida e nunca perdeu o lugar central na sua mesa de cabeceira (mesmo que os livros que lá se amontoam sejam frequentemente revezados). “É o livro da minha vida porque não é só um livro. É um gesto de resistência que espelha a maneira como penso e ajo”, diz Coutinho, de 32 anos.

Longe de imaginarem que ainda hoje o livro seria companhia de cabeceira ou presente de aniversário de jovens mulheres, em maio de 1971 as escritoras Maria Isabel Barreno​, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa se juntaram para escrever o livro que viria a ter como título "Novas Cartas Portuguesas".

Entrecruzando cartas, poemas, ensaios, relatórios (e até excertos do Código Penal) e partindo das cartas escritas pela freira portuguesa Mariana Alcoforado quando estava enclausurada no convento de Beja, as autoras desafiavam a ideia cristalizada e subserviente da mulher, recusavam a clausura que lhes era exigida pelos outros —tecendo também críticas à ditadura, à guerra colonial e ao sistema judicial— e exigiam ser donas do seu corpo, da sua vontade sexual e dos seus pensamentos.

O livro foi destruído pela censura três dias depois de estar em circulação —com a justificativa de ser “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”—, e as autoras foram alvo de um processo judicial que ficou conhecido além das fronteiras. A cobertura do julgamento foi feita por órgãos de comunicação como o Le Monde e o The New York Times, além de redes de televisão internacionais e centenas de feministas por todo o mundo.

Nomes ressonantes, como as escritoras e ativistas Simone de Beauvoir e Marguerite Duras, organizaram manifestações junto das embaixadas de Portugal em defesa das “três Marias”. Em 1973, este caso foi votado, numa conferência da National Organization for Women, em Boston, como a primeira causa feminista internacional.

Hoje, "Novas Cartas Portuguesas" é um dos livros portugueses mais traduzidos, estudado em várias universidades estrangeiras e adaptado para peças de teatro em Nova York e Paris. Em Portugal, neste 50º aniversário da obra, o livro não só sobrevive ao tempo como continua a inspirar e a mobilizar os mais jovens. Há quem o encare como uma herança feminista, um abraço nos dias que correm ou uma lição para o ativismo do futuro.

Um abraço, um afago e alento

Para Ana Cunha, esta obra é capaz de provocar vários ecos e as suas leitoras podem ser de origens muito diversificadas —só não o aconselha a quem esteja à procura de um livro leve de praia. Avisa, desde logo, que é uma obra que nos faz olhar para trás. “Lembra-me do que herdei, mostra que a luta feminista de hoje não é órfã, nem dissidente, nem marginal”, afirma, lembrando as várias cartas que dão conta do papel, das expectativas ou das relações familiares que as mulheres construíam.

No caso de Patrícia Brásia, de 32 anos, o livro também é uma ponte com o passado. Como viveu a sua infância e juventude no Brasil, "Novas Cartas Portuguesas" é uma forma de cimentar raízes com Portugal e, especialmente, com a sua avó. “Ela me persegue sempre nestas leituras; quando estou lendo, estou pensando no que a minha avó terá vivido nesta altura”, diz Brásia, que desenha corações nas páginas do livro, assinalando poemas ou excertos das cartas.

Além de servir de fio condutor nas inúmeras conversas com a avó sobre a condição das mulheres, este livro é ainda um rastilho para novos desafios. “A minha avó lê muito e, depois de ler este livro, pedi-lhe para ver quantas autoras tinha nas suas estantes. E tinha muito poucas. É muito interessante ver uma mulher de 80 anos a confrontar-se com isso pela primeira vez”, recorda.

As "três Marias" foram julgadas e tiveram o livro destruído; 50 anos depois, a obra ainda agita a vida das jovens - Museu do Aljube

Brásia olha para esta obra como “um abraço, um afago, um alento” que responde aos problemas do presente. “Se, por um lado, pode ser o reflexo do que foi a experiência da minha avó, também encontro um espelho no livro para o meu desejo e para a minha dor”, afirma a leitora, que nos desafia a ouvir os relatos de assédio sexual, crime que todos os dias leva à abertura de dois inquéritos em Portugal.

Os testemunhos que ouve, de amigas e conhecidas, nas ruas do Porto, onde vive, a fazem sentir pouco segura na rua. “E ainda ouço comentários como aqueles que aparecem no livro, que sou eu que tenho de me enclausurar para me proteger”, exemplifica. No entanto, considera que agora as respostas são diferentes. “A minha avó não tinha vocabulário para descrever aquilo que sentiu e que ela passou. Mas eu tenho, e é preciso dar nomes às coisas, não aceitar e denunciar.”

Já a atriz e encenadora Teresa Coutinho considera que esta obra não só continua atual como as cartas que versam sobre prazer e vontade sexual funcionaram como “purga” para as inquietações mais íntimas da infância. “Estava num processo de descoberta da minha sexualidade e identidade e estava sendo um processo complicado e violento. O livro me deu uma força imensa, houve uma consciência feminista que nasceu ali”, clarifica.

Influenciadas pela obra, Teresa Coutinho e as amigas, na altura com 16 anos, criaram “um gênero de correspondência feminista”, em que compartilhavam emails desabafando o que sentiam em relação à sua família, aos amigos e à sua própria sexualidade —com a particularidade de se tratarem por “manas”, como acontece entre as autoras de "Novas Cartas Portuguesas".

Agora, com 32 anos, abrir este livro é muitas vezes um momento de reencontro com a sua adolescência. “Olho para as notas que tirava ao lado dos poemas e já não fazem sentido nenhum”, diz Coutinho. Ainda assim, esta continua a ser uma das obras que mais influenciam a poesia que escreve (e que guarda principalmente para si) e uma das protagonistas das várias leituras encenadas que a atriz faz em ciclos de poesia, como o Clube dos Poetas Vivos, do Teatro Nacional D. Maria 2ª, do qual é coordenadora há seis anos.

“É preciso levar esta agitação ao público”, defende. “Esta obra representa uma forma de agir que continua a ser necessária, ainda nos deparamos com desigualdades de gênero, e este livro representa um gesto de resistência a um sistema esmagador, opressivo, totalitário e que nos desafia a nos vingarmoos disso”, justifica Coutinho, que foi convidada para fazer parte de uma peça de teatro sobre as "Novas Cartas Portuguesas" que estreia no próximo ano.

Uma geração interveniente

Das três autoras, a única sobrevivente é Maria Teresa Horta. São muitas as vezes em que recorda o dia 18 de abril de 1974, em que o juiz deveria ler a sentença das três autoras por terem escrito "Novas Cartas Portuguesas". Naquela tarde, o tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, “estava cheio de feministas e de televisões de vários países” e, à porta, estavam três carros da polícia de choque.

“Eu e a Fátima [Maria Velho da Costa] fomos perguntar o que se passava, e o agente disse que nós devíamos sair dali, porque as ‘três Marias’ iam ser presas e podia dar uma grande confusão”, recorda Maria Teresa Horta, que na altura teria pedido ao seu marido, Luís, que, caso fosse presa, lhe levasse “algo para escrever, um lápis ou uma esferográfica”.

A leitura da sentença acabou por ser adiada para maio e as autoras foram absolvidas. E se na altura isto foi “um grande burburinho”, a poeta acredita que ainda hoje a obra é “um incômodo” para algumas pessoas. “Causa-me estranheza a falta de mudança de mentalidades, achava que nesta altura Portugal estaria diferente, mas ainda há uma ridicularização, um risinho, quando se fala de feminismo”, critica.

“É muito difícil para mim avaliar o impacto que este livro tem nos dias de hoje”, acrescenta a autora. Ainda assim, considera “muito curiosa” a atenção que o livro tem despertado entre os jovens. “Nunca pensei que, depois de tantos anos, houvesse este interesse”, diz Maria Teresa Horta, referindo-se, por exemplo, à exposição "Mulheres e Resistência – Novas Cartas Portuguesas e Outras Lutas" do Museu do Aljube, que tem sido visitada principalmente por jovens e mulheres.

Nos últimos meses, a escritora de 84 anos também tem sido contatada por investigadoras com interesse em analisar a obra e jovens com curiosidade em saber mais sobre a história das autoras —no entanto, também há alguns relatos “preocupantes”. “Há jovens que me dizem que continuam a se identificar com o livro, a sentir que o livro as defende, que o livro ainda é uma arma. Isso quer dizer que os problemas continuam a existir, seja trabalho doméstico, a violência, as expectativas sobre o casamento”, alerta.

Apesar de ser considerado um marco do feminismo português e um dos livros mais inovadores do século 20, a obra não recebeu especial atenção no rescaldo do 25 de abril, o dia da Revolução dos Cravos, que encerrou a ditadura do Estado Novo no país —o que, como explica a escritora Ana Luísa Amaral, se justifica pelo fato de se dedicar a questões de gênero, relegando para segundo plano a luta das classes, tema que predominava nas discussões da década de 1970.

Este esquecimento se refletiu em algumas edições descuidadas do livro (com erros factuais e imprecisões), levando a que, em 2011, Ana Luísa Amaral organizasse uma edição anotada, com inúmeras referências socioculturais e literárias, tornando esta leitura mais acessível aos jovens.

Agora, identifica um novo interesse. “Acho que é esta nova geração que está retomando as 'Novas Cartas Portuguesas'”, defende a escritora, vencedora do prêmio Rainha Sofia, a maior distinção para a poesia no espaço literário ibero-americano. “É uma nova geração muito interveniente, muito combativa. Eu a chamaria de a quarta vaga do feminismo, que junta as 'Novas Cartas Portuguesas' com a luta ‘trans’ ou com os estudos queer”, defende.

À luz das novas teorias

Ao longo dos anos, "Novas Cartas Portuguesas" tem sido estudada pela teoria feminista ou em estudos de gênero e, num momento em que a interseccionalidade é uma bandeira do feminismo, esta obra ganha mais amplitude. “É um livro que nos ensina a nos aceitarmos e nos defendermos, e isso também inclui mulheres lésbicas, transgênero, assexuais ou negras”, exemplifica Ana Cunha. “Há uma identificação muito fácil com qualquer pessoa que tenha se sentido objeto de opressão ou sujeito que deseja”, corrobora Brásia.

Mais recentemente, a obra tem sido analisada à luz de outras teorias, como a teoria queer, uma vez que, além de as autoras denunciarem situações de discriminação, questionam também as categorias estanques de identidades e dos papéis sexuais. Como afirma Ana Luísa Amaral, há várias propostas queer que podem ser aplicadas na obra, como a recusa de dicotomias de gênero ou o próprio questionamento daquilo que seria uma identidade feminina e masculina.

É precisamente nesta direção que João Miguel Ferreira, de 32 anos, olha para a obra. “Mostra-nos que há mais cores e mais possibilidades de existência, que não temos de seguir um perfil, e isso diz respeito não só às mulheres, mas a várias minorias que ainda hoje são oprimidas e ameaçadas, como a comunidade LGBTQIA+”, defende o professor.

Conheceu este livro por recomendação de uma professora, quando estudava literatura inglesa e francesa na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, e agora insiste em empurrar esta leitura a todos os seus amigos, inclusive homens. “Há muita coisa do livro que os homens não têm forma de saber, o prazer erótico ainda é muitas vezes uma ofensa à moral, ainda é um tabu”, justifica.

Todos os anos, João leva esta obra aos seus alunos dos 11º e 12º anos, nas explicações que dá de português e literatura, em Santarém, em Portugal. Costumam ler, analisar e discutir vários excertos e poemas —e se, por um lado, há passagens que suscitam “risinhos” entre os rapazes, também há alunos que surpreendem com o seu interesse. “Tenho alunos que gostam do livro e que desconstroem a ideia que têm sobre a forma como as mulheres escrevem.”

Até há quem se aventure em preparar um PowerPoint para apresentar o livro à turma —e, no final das apresentações, há quase sempre “uma nota comum” em todos os trabalhos. “Seja quem for que esteja apresentando, os alunos concluem que o livro nos ensina a ser nós próprios, a não ter medo daquilo que somos”, diz João Miguel Ferreira, defendendo que esta deveria ser uma leitura obrigatória no Plano Nacional de Leitura.

“E de nós, o que faremos?”

Um livro, um grupo de jovens e uma pergunta no ar (que fecha o primeiro dos 120 textos da obra) –“e de nós, o que faremos?”. Para Patrícia Brásia, esta pergunta —e a obra em si— a levam a refletir sobre os frutos que podem nascer do diálogo entre mulheres. “Penso muitas vezes no que aconteceria se um dia também eu me juntasse com outras mulheres e fizéssemos um projeto que fosse um pacto de sororidade”, afirma. E já há projectos nascendo desta inquietação. Há um ano que Brásia, que trabalha como roteirista, está desenvolvendo uma minissérie documental chamada "As Três da Vida Airada".

No caso de Ana Cunha, a história de união e sororidade das autoras é também a grande contribuição para o seu ativismo. “É a maior lição para o ativismo que eu gostava de fazer e que gostava que todos fizéssemos”, diz Cunha, que destaca a união das autoras em desafiar a ideia de autoria. Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa nunca revelaram quem escreveu cada um dos textos, nem quando foram interrogadas pela Pide (polícia da ditadura portuguesa), na tentativa de saber quem tinha escrito as partes de maior atentado à moral.

“Esta convicção de trabalho coletivo é uma dedicação à causa extraordinária. A ideia de que há um líder de um movimento em que tudo se reflete está ultrapassada. Hoje, os movimentos que têm mais sucesso também são movimentos que não têm uma só cara.”

A escritora portuguesa Maria Teresa Horta
A escritora portuguesa Maria Teresa Horta, única das autoras ainda viva - Reprodução

Tanto Ana Cunha como Patrícia Brásia, Teresa Coutinho ou João Miguel Ferreira consideram que não deixar o livro morrer passa por a recomendar a quem está próximo —seja a amigos, família, namorados ou mesmo a desconhecidos nas redes sociais, como aconteceu com Ferreira, que emprestou o livro a uma auxiliar da escola de Santarém, depois de esta ter comentado o seu post no Facebook sobre a obra.

E é precisamente nesta rede de partilha que o livro continua a chegar a novos leitores, como Íris Cabaça, que trabalha numa loja de chás, em Lisboa. Ouviu falar do livro pela primeira vez no Twitter de uma amiga. “Eu andei tantos anos estudando e nunca tinha ouvido falar deste livro”, diz Cabaça, de 26 anos. Agora considera “o primeiro livro feminista” que lhe passou pelas mãos e um dos que mais têm contribuído para cimentar o seu ativismo.

Se tivesse de escolher uma carta para despertar novos leitores, Cabaça escolheria a "Segunda Carta 8", que versa sobre a farsa da libertação da mulher, que continua “apanhada nas malhas de uma sociedade que a usa, a domina, a escraviza, a conduz, a utiliza, a manuseia, a consome”. E, além de continuar a ser urgente sacudir estas amarras, Teresa Coutinho alerta que, caso o livro fosse escrito hoje, haveria novos problemas a destacar. “Temos agora muito a tendência de romancear a capacidade de resistência das mulheres, o que nos empurra para uma profunda exaustão. Precisamos começar a falar do direito ao tempo”, defende.

Já Maria Teresa Horta, se pudesse deixar um recado a todas as jovens, deixaria um sinal de alerta. “Há mulheres que acham que já conquistámos alguns direitos e que chegamos a um ponto em que não é necessário lutar. Mas é muito necessário, porque quando nos damos conta as coisas voltam para trás”, afirma.

Por seu lado, se Ana Cunha tivesse de escolher uma frase do livro que o torne perpétuo e capaz de abraçar qualquer mulher, não lhe restam dúvidas de que seria a última frase da penúltima carta. “Continuamos sós, mas menos desamparadas.”

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