A sequência inicial de "Meu Tio José", animação de Ducca Rios exibida agora na Mostra de São Paulo, mostra em montagem paralela o protagonista Adonias sonhando acordado com um jogo da seleção de 1983 durante a aula. Enquanto isso, seu tio, o José, membro do movimento Dissidência da Guanabara —o mesmo responsável pelo sequestro de um embaixador americano em 1969— é vítima de uma emboscada dentro de uma farmácia.
A sequência é muito bem montada e dirigida, apesar da limitação técnica imposta pela animação "cut out", isto é, com figuras recortadas de materiais como papel e tecido. A partir dela, sabemos que temos aí mais um filme de formação, centrado na relação entre a inocência de uma criança e o horror do contexto político que a circunda —da mesma estirpe do conterrâneo "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias" de Cao Hamburguer, ou ainda da animação "Persépolis", de Marjane Satrapi.
Mas, enquanto o longa da iraniana radicada na França equilibra e desenvolve muito bem as grandezas do mundo particular da protagonista e do ambiente assombroso que a rodeia, o filme de Ducca Rios esquece seus personagens e decide usar o maniqueísmo político e didatismo como motores da narrativa.
Logo após a cena de abertura, a mãe do protagonista vai buscar o menino na escola e os dois passeiam de carro por Salvador enquanto materiais gráficos da época —propagandas, pichações, charges e notícias— vão tomando o cenário a ponto de prédios serem representados por gigantescas colagens de páginas de jornal.
Se a ideia era situar visualmente o contexto histórico da época, o resultado acaba sendo um bom exemplo de como toda e qualquer ansiedade fora desse discurso político maniqueísta é simplesmente oprimida e menosprezada. Enquanto a família sofre para saber se o tio José vai sobreviver aos tiros que levou na farmácia, Adonias se preocupa com uma redação de tema livre que precisa entregar para a professora até o fim da semana. Resta alguma dúvida sobre o que o garoto vai escrever?
Mesmo a formação política do personagem é inconstante. Durante sequências de fantasia, Adonias logo de cara se vê sendo oprimido por Nossas Senhoras que se transmutam em serpentes; vê nos seus algozes da escola a figura de militares que desferem pontapés na sua barriga usando coturno e chega a se imaginar em sessões de tortura com direito a afogamento e pau de arara. "Meus pais são professores", o protagonista faz questão de repetir ao longo do filme, como se tentando justificar a parca efervescência e incongruência das suas descobertas interiores.
No fim, Adonias não aprendeu nada que já não sabia no começo. Na verdade, não havia inocência nenhuma frente ao horror que o circundava. Quer dizer, algum tipo de inocência certamente permeia esse mundo. Em determinado momento, uma professora consola Adonias, que foi surrado por valentões —filhos de militares — com a anuência da diretora fascista da escola. A professora diz "não se preocupe, Adonias, pessoas como ela não tem espaço na democracia que está voltando a surgir no Brasil". Aham….
Entre o excesso de boas intenções e as metáforas visuais rasteiras, "Meu Tio José" entrega não mais que o esboço de um filme de formação e um previsível registro histórico.
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