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Cinema oriente médio

'O Homem que Vendeu Sua Pele' é afetado e vive de suas boas intenções

Discussões sobre arte, mercadoria e problemas do Oriente Médio ficam soterrados sob um esteticismo enlouquecido

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O Homem que Vendeu Sua Pele

  • Quando Estreia nesta quinta (7)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Yahya Mahayni, Monica Bellucci e Dea Liane
  • Produção Tunísia/França/Bélgica, 2020
  • Direção Kaouther Ben Hania

O princípio de “O Homem que Vendeu Sua Pele” não é mau. Sam Ali, jovem sírio, é preso pelo regime de Assad —estamos em 2011—, por uma bobagem que a polícia interpreta como gravíssima.

Sam consegue fugir para o Líbano, mas isso não é suficiente para ele. Seu verdadeiro objetivo é chegar a Abeer, a bela jovem a quem namorava e que agora está casada com um diplomata na Bélgica. Como sua paixão não conhece limites, ele aceita a proposta de Jeffrey, um artista famosíssimo, caríssimo, badaladíssimo e todos mais "íssimos" que se possa acrescentar.

A ideia de Jeffrey é que Sam venda a ele não a alma, mas a pele das costas. Lá ele fará uma tatuagem-arte que valerá bilhões. Sam vai embolsar uma dinheirama e —aí vem o melhor do filme—, assim fazendo, Sam se torna uma mercadoria. E mercadorias circulam com muito mais facilidade do que gente. Assim, ele ganhará um passaporte que o pode levar a qualquer parte do mundo, enquanto como humano o passaporte era negado.

O cinismo da observação poderia ser levado de modo mais divertido pelo filme, caso fizesse de Jeffrey um artista engajado com as boas causas et cetera. Ou seja, um artista que faturasse com elas.

Talvez essa ideia até tenha passado pela cabeça da roteirista e diretora Kaouther Ben Hania, mas não tenha sido julgada de bom tom por algum dos produtores do filme —cuja nacionalidade é dividida entre Tunísia, França, Bélgica, Alemanha, Turquia e Suécia. Muita gente para dar palpite.

Em vista disso, o filme se reduz basicamente a sessões de exibição das valiosas costas de Sam Ali, a suas tentativas em geral frustradas de se aproximar de Abeer, à permanente companhia de sua vigilante, Soraya —vivida por Monica Bellucci— e pelo guarda-costas que está lá para impedir que ele, em permanente depressão, escape.

Entram na história associações de refugiados, pancadaria com o marido de Abeer e até mesmo uma transação em que o homem-arte é vendido. Mas isso não seria tráfico de humanos? Soraya explica que por atrasos da legislação muitos países veem as coisas desse modo, mas na Suíça, esse oásis de legislação arejada, isso é possível, sim. Não por acaso, a Suíça não consta da vasta lista de países coprodutores do filme.

Entre investidas no mercado de arte —que, sabemos, é coisa tenebrosa— e os problemas sentimentais de Sam e Abeer, Ben Hania optou por um esteticismo quase doentio. Praticamente não há plano sem uma porta, uma janela, um espelho, um lustre ou qualquer badulaque entre seu objeto e o espectador.

Em face disso, as intenções, por melhores que sejam —tratar de alguns dos milhares de problemas do Oriente Médio—, ficam soterradas sob um apuro visual enlouquecido. Ele escapa, justamente, na cena em que Sam está sendo vendido, numa elegante casa de leilões, ou nas embaraçosas explicações que o agente do seguro de vida de Sam oferece sobre o que aconteceria no caso da sua morte e do inexorável desaparecimento da obra-prima que carrega nas costas. Isto é, cenas em que o sarcasmo triunfa sobre os inúmeros pontos vazios do roteiro.

Ainda que soterradas, as intenções são o que melhor resiste nesse conjunto quase sempre pernóstico, pois a ideia de deslocamento, o sentimento de estar sempre no lugar errado, de nunca pertencer a parte alguma, que acompanha o personagem de Sam não é estéril e tem algo a dizer sobre o Oriente Médio —e não só.

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