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Pesquisadora mostra que humanos não são o umbigo do mundo

'O que Diriam os Animais?' defende que vacas vão para a ordenhadeira porque têm vontade de cooperar com fazendeiro

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Marilene Felinto

Escritora, é autora de "As Mulheres de Tijucopapo" e mantém o site marilenefelinto.com.br

Um livro em forma de abecedário —“A de Artistas”, “B de Bestas”, “F de Fazer científico”—, que parece uma cartilha infantil, mas é um estudo interessantíssimo, curioso e revelador no campo da etologia, atualmente também chamada de “estudos animais”.

Em “O que Diriam os Animais?”, a psicóloga belga Vinciane Despret questiona a ciência experimental convencional, em particular a visão comportamental em experimentos com animais. Ela faz uma análise crítica das práticas e resultados de pesquisas com animais em laboratório, e põe foco na relação interativa —e mais esclarecedora e frutífera em termos de respostas dos animais— entre animais e seus tratadores, criadores e treinadores em campo.

No original, a publicação tem o título estendido para “O que Diriam os Animais se... Fizéssemos a Eles as Perguntas Certas?”. Perguntas, aqui, são as propostas, os dispositivos, para que o animal
responda aos experimentos.

Todo o questionamento de Despret se concentra nisto: no quanto mais e melhor os animais responderiam se o pesquisador “escutasse” as demandas deles, se o cientista não se colocasse hierarquicamente no lugar de autoridade, do único que sabe, contra os animais que nada sabem, irracionais e passíveis, portanto, de condicionamento.

A psicóloga quer mostrar como nada é tão automático quanto parece no comportamento, por exemplo, das vacas que caminham sozinhas para a ordenhadeira mecânica. Na conclusão de Despret, a partir de relatos de fazendeiros que “conversam” com seus animais, as vacas vão para a ordenhadeira porque “querem” ir, porque têm “vontade” de cooperar com o fazendeiro, porque são ativas e “trabalham” para o bom funcionamento da fazenda.

Um tanto de antropomorfismo —vontade, cooperação, trabalho— entra nesse cálculo, e não é pecado que conste dos resultados da pesquisa científica, defende Despret, embora nunca conste.

Ela cita pesquisa da também especialista em filosofia Vicki Hearne, quando esta menciona o exemplo da má fama dos gatos e dos papagaios como cobaias de laboratório. Os gatos, observa ela, respondem imediatamente, com curva acentuada de inteligência, levantando uma alavanca para obter comida, mas logo depois se recusam a continuar, nem que morram de fome.

“Ao contrário do que se poderia pensar, os gatos não se recusam a agradar. Consideram as expectativas dos humanos [...] importantes e levam sua tarefa [...] a sério. [...] O gato recusa, pelo simples motivo de que não lhe foi dada a escolha de responder ou não a essas expectativas.”

Isso significa dizer que, para obter sucesso, o experimentador precisava fazer um pacto com o gato, um tipo de compromisso de troca, de modo que o bicho pudesse manifestar sua posição quanto ao que lhe foi demandado. Precisava se perguntar como aquele dispositivo poderia interessar ao gato, ceder “às exigências behavioristas de negar qualquer possibilidade de contato entre o experimentador e seu objeto-sujeito”.

Vinciane Despret se insere no campo de discussão contemporâneo sobre as relações entre humanos e não humanos que questiona os valores do humanismo baseados no antropocentrismo, dominante na cultura ocidental.

Ela pertence a uma geração de filósofas, biólogas, antropólogas, psicólogas, sociólogas e historiadoras nascidas nas décadas de 1940 e 1950 —Donna Haraway, Bruno Latour, Isabelle Stengers, entre outros, inspirados em parte pelas teorias de Deleuze e Guatarri sobre o “devir animal”—, que atuam na confluência de todos esses campos do conhecimento e que têm feito escola em seus
países de origem e fora deles.

No Brasil, a recente obra da pesquisadora Juliana Fausto —“A Cosmopolítica dos Animais”, publicada em 2020 pela N-1 Edições— é exemplo desse espelhamento feliz, que joga luz num mundo melhor, em que o homem é deslocado de sua equivocada posição de centro do cosmos.

O que Diriam os Animais?

  • Preço R$ 69,90 (320 págs.); R$ 49,90 (e-book)
  • Autor Vinciane Despret
  • Editora Ubu
  • Tradução Letícia Mei
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