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Por que Marguerite Duras, autora que escrevia para não morrer, ressurge no Brasil

Francesa, que derramava sua intimidade na página como poucos, terá ao menos 12 livros lançados no país

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marguerite duras olha para baixo, de coque, em foto em preto e branco

Marguerite Duras, escritora francesa nascida na antiga Indochina, atual Vietnã, e autora de clássicos como 'O Amante' e 'A Dor' Marguerite Duras/MD

São Paulo

"Não sei o que é um livro. Ninguém sabe. Mas sabemos quando ele existe", escreve Marguerite Duras. "E, quando não há nada, sabemos, do mesmo modo como sabemos que estamos vivos, que ainda não morremos."

Talvez Duras seja a autora para quem escrever mais se confundia com viver. É quase impossível desembaraçar ficção de autobiografia na sua obra, permeada por um tom confessional que soa como se a francesa estivesse narrando tudo para você de uma poltrona logo ao lado.

O crítico literário Alain Vircondelet já disse que Duras "escrevia para não morrer", o que bem define o fervor que a impelia a pôr palavras no papel e antecipa que a escrita continuaria a manter seu coração batendo —a Relicário acaba de lançar uma coleção que editará ao menos dez livros da autora, morta há 25 anos.

O primeiro da leva é "Escrever", de onde saiu o trecho lá do começo e no qual Duras se propõe a explicar algo de seu processo criativo —da maneira torta que lhe é possível, já que em meio ao texto ela enlaça novas tramas e se detém, por exemplo, na reflexão sobre a morte de uma mosca.

"Escrever era a única coisa que preenchia minha vida e a encantava. Foi o que fiz. A escrita jamais me abandonou", narra a autora. "Posso dizer o que quiser, mas jamais vou saber por que escrevemos e como não escrevemos", diz, mais adiante, abandonando qualquer pretensão didática.

Tamanho ressurgimento de Duras no Brasil pressupõe que sua obra ainda encontre eco em leitores e escritores. "A autoficção está em voga em muitos autores e autoras brasileiras, e Duras é uma das desbravadoras desse território", afirma Maurício Ayer, que ensina literatura francesa na Universidade de São Paulo.

"Há muita atualidade no enfoque que ela dá à questão da mulher, da exploração, da colonização", aponta Cristina Kuntz, que realizou doutorado sobre a escritora, assim como Ayer. "E Duras vai fundo no íntimo, mostra as chagas do nosso momento sem usar um discurso grandiloquente."

A escritora Adriana Lisboa, que colabora com o projeto da Relicário, identifica "uma musicalidade muito grande" no modo como a narrativa de Duras reitera palavras e expressões. "Essa repetição traz à tona tanto a sonoridade musical da palavra quanto a ideia de se repetir para fazer sentido de algo que nunca vai fazer sentido. Um desespero transmitido pela reiteração."

"Ler Duras é sempre como ler o livro do momento", afirma Lisboa, que também é doutora em literatura comparada. "Existe uma exploração tão funda de questões tão essenciais, como o desejo, a morte, a impossibilidade da própria escrita, que, no entanto, vai sendo feita mesmo assim."

O professor Maurício Ayer afirma que "cada vez mais Duras faz da experiência do escrever o material da sua escrita". Uma de suas obras de maturidade, "Emily L.", observa uma poeta que parou de escrever pelos olhos de outra escritora, uma narradora que revela ter muito em comum com Duras. "Escrever é também não saber o que se faz, ser incapaz de julgar, há certamente uma parcela disso no escritor, um clarão que cega."

E quase tudo o que a própria Duras viveu foi traduzido em sua literatura, que alcançou ápice de popularidade justamente no seu momento mais autobiográfico, com "O Amante", vencedor do Goncourt de 1984. Ali, ela relatava o amor proibido que viveu por um homem rico e mais velho na Indochina de sua juventude, enquanto sua família experimentava a mais trágica pobreza.

É um jeito rasteiro de resumir um livro enganosamente simples, que empilha diferentes temporalidades e planos narrativos, como numa sinfonia musical.

Numa história famosa que revela muito de sua visão criativa, Duras ficou tão revoltada com as simplificações na versão cinematográfica de "O Amante", dirigida por Jean-Jacques Annaud em 1992, que escreveu um novo livro em resposta, "O Amante da China do Norte".

Os dois livros, aliás, estão disponíveis em edições recentes no Brasil. O primeiro pela Tusquets e o segundo pela Nova Fronteira, que também publicou "Emily L.". A Bazar do Tempo também embarca na autora no ano que vem com "A Dor", seu relato pungente sobre a espera pelo marido na guerra, e a série de ensaios "A Vida Material".

O projeto mais ambicioso é o da Relicário, que prepara para o ano que vem "Moderato Cantábile", considerado um ponto de virada na carreira da autora; a coletânea de crônicas "O Verão de 80"; e uma edição com o roteiro de "Hiroshima, Meu Amor", filme agora também em exibição na Bienal de São Paulo, que alavancou sua fama no final dos anos 1950.

mulher e homem se encaram
Emmanuelle Riva e Eiji Okada em cena do filme 'Hiroshima, Meu Amor', de Alain Resnais, de 1959 - Divulgação

O filme é talvez a maior prova de que o derramamento de Duras em palavras não tinha sempre o mesmo formato —sua ligação umbilical com o cinema, além do clássico de Alain Resnais, rendeu uma ousada carreira como cineasta a partir da década de 1970, de "India Song", sobre a mulher de um diplomata vivida por Delphine Seyrig, a "Le Camion", um filme-ensaio com Gérard Depardieu.

Luciene Guimarães, especialista em Duras que traduziu "Escrever", diz que essa intermidialidade é chave para entender a obra durasiana. Seus textos são muito visuais e seus filmes, muito literários. "É difícil pensar a obra dela só como literatura, só como cinema ou teatro. Está tudo muito imbricado."

"O Deslumbramento de Lol V. Stein", por exemplo, era uma encomenda de peça de teatro, então virou um projeto de filme e, enfim, um livro que arrebatou seu amigo Jacques Lacan, que o considerou um estudo psicanalítico em forma de literatura.

A confusão de formatos está contida na origem do próprio "Escrever" —que é oral. O livro surgiu de uma entrevista em vídeo dada pela autora, em sua casa, ao cineasta Benoit Jacquot.

Há ainda no país, segundo os pesquisadores, uma demanda reprimida pela literatura de Duras, que segue amplamente estudada dentro e fora do Brasil e foi editada de forma esparsa por aqui desde sua explosão nos anos 1980.

Levantamento feito pela tradutora Denise Bottmann para um colóquio no centenário da francesa, em 2014, registra que ela teve 22 obras traduzidas naquela década. Em 1985, foram impressionantes dez reedições de "O Amante" em apenas seis meses.

É difícil apontar com precisão por que esse best-seller cativou tanta gente, mas Adriana Lisboa levanta algumas hipóteses. É um livro que parece brotado na página sem pensar, de chofre, "muito libertador de um beletrismo anterior". "Duras definitivamente foi uma mulher que não teve censura para escrever nem para falar suas opiniões políticas e literárias", aponta a escritora.

"Creio que o que condeno nos livros é, de modo geral, o fato de não serem livres", anota Duras em seu ensaio "Escrever". "Isso se vê através da escrita. Eles são fabricados, organizados, regulamentados, adequados, eu diria. O escritor se torna então seu próprio policial."

Já ela se recusava a fazer isso. "Nunca menti em um livro", escreve. "Nem na vida. Exceto para os homens."

Escrever

  • Preço R$ 55,90 (144 págs.)
  • Autoria Marguerite Duras
  • Editora Relicário
  • Tradução Luciene Guimarães de Oliveira

O QUE SERÁ PUBLICADO

Ed. Relicário
‘Escrever’
‘Hiroshima, Meu Amor’
‘Moderato Cantabile’
‘O Verão de 80’
‘Olhos Azuis, Cabelos Pretos’
‘A Puta da Costa da Normandia’
‘O Homem Atlântico’
‘O Homem Sentado no Corredor’
‘Destruir, Disse Ela’
‘Emily L.’

Ed. Bazar doTempo
‘A Dor’
‘A Vida Material’
‘Yann Andréa Steiner’

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