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Quem é Alejandro Zambra, autor chileno que virou cult com literatura sussurrante

Escritor, que lança novo romance e tem obra reunida no Brasil, é primeiro nome confirmado da próxima Flip

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ilustração

'Red Tiger', obra do artista mexicano Jesús Cisneros que ilustra a capa de 'Ficções 2006-2014', volume a sair pela Companhia das Letras que reúne os romances e contos do escritor chileno Alejandro Zambra Reprodução

São Paulo

Idealmente, um perfil jornalístico se faz com longas conversas, de preferência ao vivo, com o perfilado, e outras, de duração variável, com pessoas de seu entorno.

Acontece que, neste caso, as coisas não puderam se dar assim. A jornalista está em São Paulo. Seu perfilado, Alejandro Zambra, é um escritor chileno radicado há quase cinco anos na Cidade do México.

vemos um homem moreno, de cabelos escuros, sentado numa escadaria, usando calça jeans e camisa social azul; ele tem o rosto apoiado na palma da mão esquerda, e os degraus da escada, que são quase todos cinza, são pintados de azul logo abaixo das pernas dele
Alejandro Zambra em 2012, ano em que 'Bonsai', seu primeiro romance, saiu no Brasil - Mabel Maldonado/Divulgação

A ficção de Zambra é povoada por protagonistas que são escritores em plena ação, escrevendo livros e tentando viver da escrita. Ganham o pão com trabalhos como contar carros ou atender telefonemas de serviço ao cliente, como o próprio autor fez.

Suas aventuras mínimas são relatadas por narradores que, por sua vez, se referem ao ato de eles próprios estarem escrevendo aquela história.

Essa obra, metalinguística e autorreferente, estará, a partir do dia 11, toda reunida em um só volume, lançado em paralelo ao mais novo romance do escritor, “Poeta Chileno”, pela Companhia das Letras.

O nome de Zambra é também o primeiro confirmado para a próxima Flip, de 27 de novembro a 5 de dezembro.

A volta à Festa Literária Internacional de Paraty, da qual participou em 2012, somada aos lançamentos, pode levar sua obra, cultuada no meio literário em vários idiomas, a alcançar mais leitores comuns.

Seus textos são feitos para eles, afinal. Embora com tramas ancoradas no mundo literário, não têm nenhum traço de empáfia, nem palavras difíceis ou citações obscuras.

A jornalista gostaria que todos os leitores entendessem o que ela sentiu ao ler esses romances e contos; a sensação de estar diante de uma grande literatura feita com uma voz pequena, ao pé do ouvido.

“No Brasil acontecem coisas esquisitas”, diz o escritor. Seu primeiro romance, “Bonsai” —publicado após dois livros de poesia, “Bahía Blanca” e “Mudanza”—, é de 2006. Mas no Brasil saiu em 2012 e a ele logo se sucederam os outros títulos já então lançados em espanhol. Em português, por isso, parecia “muito prolífico”.

Sua obra ficcional não foi reunida em nenhum outro país. Então, diz Zambra, rindo, “parece que só no Brasil” ele é um escritor muito experiente. “Isso me enche de orgulho.”

As constatações do escritor vêm da única conversa real que a jornalista tem com ele, por duas horas, ao telefone.

Parece muito, mas não para um perfil, que busca criar a ilusão, emprestada da boa literatura, de que —a despeito da extensão limitada de um texto de jornal— conhecemos a verdade do personagem.

Na ficção, essa ilusão cresce em obras de fundo autobiográfico, como a de Zambra. “O que importa é como esse eu ressoa em função dos outros que são os leitores”, diz ele.

“De repente, se você conta algo muito específico de sua vida, eu reconheço algo próprio meu, que me permite me identificar com seu texto.”

Com isso, define o efeito de seus escritos. Há verdade neles, mas não necessariamente porque os fatos sejam reais.

Em 2015, James Wood, crítico de peso na arena internacional, registrou em um texto para a revista The New Yorker o que o escritor parecia perseguir —uma ficção que capturasse toda a vida, escapando da artificialidade da forma.

Zambra, que foi crítico literário no Chile —parte de seus textos dessa época está em “No Leer”, ainda sem tradução—, diz gostar do trabalho jornalístico. Mas “não poderia impor limites precisos”, como se faz na imprensa, a um projeto. Ainda que a brevidade de seus primeiros livros pareça indicar o oposto.

Em “Ficção 2006-2014”, a reunião que sai agora, os romances "Bonsai", “A Vida Privada das Árvores” e “Formas de Voltar para Casa”; os contos de “Meus Documentos” e outros nove, antes dispersos; e por fim, “Múltipla Escolha”, seu livro mais experimental, somam 560 páginas. “Poeta Chileno”, sozinho, alcança 432.

Mas a contenção como desígnio, pondera Zambra, se aplica apenas a “Bonsai”. Ali, “a síntese e a capacidade de sugerir eram parte do projeto”.

O primeiro editor brasileiro a perceber o potencial desse projeto foi Cassiano Elek Machado. Hoje diretor editorial da Planeta, ele ocupava esse posto na Cosac Naify em 2009, quando, numa viagem a Barcelona, deu com “Bonsai”.

“Fiquei muito encantado, porque já na primeira frase ele te pega. Tem uma singeleza e uma força, como um bonsai, muito arrebatadora.”

A primeira frase de “Bonsai” diz: “No final, ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia.”

O romance, portanto, começa contando o final. Isso, porém, não impede o interesse do leitor em entender o que acontecerá com aqueles dois jovens estudantes de literatura, Julio e Emilia, que transam não embalados por canções, mas por trechos de livros.

Elek considerou que o livro daquele “cara muito original” caberia bem na linha de escritores contemporâneos da editora. E passou o texto a seu amigo Emilio Fraia, escritor e editor que trabalhava na Cosac Naify e que, hoje na Companhia das Letras, responde pela obra do chileno.

Fraia lembra que ficou “muito impressionado”. “Era uma espécie de romance em miniatura. A gente podia dizer ainda que era um romance, mas tinha certa instabilidade.”

Num giro improvável para tão curto livrinho, “Bonsai” ganhou as telas de cinema. Segundo longa do chileno Cristián Jiménez, o filme esteve na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes em 2011.
Jiménez tinha amigos em comum com Zambra e conhecia sua obra poética. Conta que adorou “Bonsai”, mas foi só numa releitura que sentiu que “tinha ali algo formal, um desafio —e nada adaptável”.

Uma moça de camiseta e roupão, ao lado de um rapaz de cueca, peito nu e com espuma de barbear na cara; ambos estão sentados num banco de madeira contra um vidro com estampa de flores
Gabriela Arancibia (Bárbara) e Diego Noguera (Julio) em cena do filme "Bonsai", adaptação, escrita e dirigida por Cristián Jiménez, do livro homônimo de Alejandro Zambra - Divulgação

Ele explica. O livro “tem um narrador com muito protagonismo, não tem muita psicologia, não tem trama. Acontece coisa à beça, mas não em termos de conflito dramático”. Foi preciso “acrescentar e reconstruir um montão”.

Ele e Zambra se reencontrariam, já como amigos e corroteiristas, em “Vida de Família”, adaptação do conto homônimo de “Meus Documentos” que Jiménez dirigiu com Alicia Scherson em 2017.

“Bonsai” ressurge ficcionalizado no segundo livro em prosa de Zambra, como um dos embriões de romance que o protagonista, Julián, inicia.

Outra história mínima, "A Vida Privada das Árvores" acompanha o elo que se forma entre Julián e a enteada, à espera da mãe dela, numa noite de demora imprevista.

Se esses dois primeiros romances são como um díptico, o terceiro, “Formas de Voltar para Casa”, representa “uma virada na literatura de Zambra”, na opinião de Fraia —e de Wood, e de outros críticos.

Fraia aprecia especialmente o aspecto metalinguístico da obra de Zambra, que, diz, atinge “um nível maravilhoso” nesse romance. Nele, duas vozes em primeira pessoa se entretecem —a do personagem escritor e a do narrador do livro que ele escreve.

“Formas de Voltar para Casa” enfoca o período em que Zambra cresceu, ainda sob a ditadura de Pinochet, mas pela ótica daqueles que chama de “personagens secundários”.

São os pais não heróis, os filhos que não tinham idade para lutar contra o regime que foi de 1973 a 1990 e estendeu sua sombra por anos mais.

O livro também “volta para casa” em sentido estrito. Ele se passa em Maipú, comuna de Santiago onde Zambra viveu infância e adolescência.

Para Livia Deorsola, que editou “Formas” na Cosac, o livro é o melhor dos romances curtos de Zambra “porque atinge o tom perfeito, olha mais para fora, olha o entorno de modo a iluminar algo em si mesmo”.

O impacto do terceiro romance do escritor ecoa na academia. No Brasil, ainda são algo incipientes os estudos da obra do chileno —surgem trabalhos de graduação e de iniciação científica e dissertações de mestrado. Vários, como atesta a plataforma Lattes, se dedicam a “Formas”.

Professora da Universidade Federal da Bahia, Júlia Morena Costa teve contato com a obra de Zambra em um estágio doutoral no Chile. Ela estudava Roberto Bolaño e queria conhecer a produção de autores contemporâneos, nascidos um pouco antes ou um pouco depois do golpe de 11 de setembro de 1973 —Zambra é de 24 de setembro de 1975.

“Zambra faz parte e é um dos maiores expoentes dessa geração que vem reivindicar pública e literariamente essa memória, que até então considerava como protagonistas dessa história somente aqueles que eram adultos quando ocorre o golpe de 1973”, diz ela.

O entendimento da ditadura, no Brasil e no Chile, “não como acontecimento circunscrito ao passado, mas como processo”, ajudaria a explicar o interesse acadêmico no livro.

Foi também “Formas” o trampolim para que Miguel Del Castillo mergulhasse no universo zambriano.

Escritor e tradutor, Del Castillo já era leitor de Zambra e também trabalhava na Cosac Naify como editor quando participou de um bate-papo com o escritor no lançamento do romance em 2014.

Revisitando anotações para o encontro, ele arrisca uma teoria sobre a função da escrita para os personagens do autor.

Em “Bonsai”, afirma, ela existe “para saber como a história se desenrola até o fim”. Em “A Vida Privada”, serve para “adiar o futuro”, a possibilidade de que a mãe não retorne. E em “Formas”, é um meio de reinventar o passado, “criar uma memória que não é sua”.

Depois do bate-papo, ele receberia de Deorsola o convite para traduzir “Meus Documentos”, coletânea na qual contos que remetem diretamente à experiência do autor —recordações da escola, dilemas com o vício do cigarro— se mesclam a desventuras amorosas e laços de família.

O trabalho de Del Castillo seguiu com “Múltipla Escolha”, no qual Zambra lança uma mirada crítica a seu país, ao parodiar o exame de admissão para a universidade vigente no Chile de 1966 a 2002.

“Múltipla Escolha” foi adaptado por Felipe Hirsch para o teatro em 2018. Durante uma residência do festival Santiago a Mil, trabalhou com o elenco local para mesclar o texto de Zambra às vivências dos atores, como ele “personagens secundários” da ditadura.

“Democracia”, a peça, encenava o questionário do exame como um game show inútil, inspirado em competições de dança dominicais que o chileno médio assistia pela TV durante o regime de Pinochet.

Hirsch recorda sentir como se fosse físico o “regimento silencioso da Constituição de um fascista, um facínora”. Um peso que só agora, após rumorosos protestos e a instituição de uma Assembleia Constituinte, está se dissolvendo.

O escritor não esteve na estreia. Ele aguardava, no México, o nascimento de seu filho.

O momento atual do autor plasma duas “obsessões” —o termo é dele— fundamentais de sua literatura. A paternidade, que perpassa vários de seus escritos, e a condição de ser chileno, agudizada pelo fato de ser hoje estrangeiro.

Zambra deixou seu país após se apaixonar pela escritora e editora mexicana Jazmina Barrera, que conheceu quando foi bolsista da Biblioteca Pública de Nova York. O filho deles, Silvestre, tem hoje três anos. Ao telefone, Zambra fala muito do menino, mas não diz nunca seu nome.

A maior parte da vida do filho transcorreu sob a pandemia. Para sorte deles, diz.

“Há quase dois anos não vou ao Chile, o que é muito doloroso para mim. Houve um momento angustioso em que brigávamos um pouco pelo privilégio de cuidar do menino. Era muito mais divertido do que ver as notícias”, diz Zambra.

A figura paterna está no centro de “Poeta Chileno”, livro que carrega um duplo paradoxo. “Escrevi esse romance tão chileno vivendo no México. E é um romance sobre ser padrasto escrito no momento em que me tornava pai.”

No romance, Gonzalo reencontra Carla, amor de adolescência, já como mãe de Vicente. Gonzalo se torna padrasto do menino e, por anos a fio, acompanha os dramas e delícias de seu crescimento.

A trama familiar eleva ao máximo a carga de ternura e o humor que marcam os escritos anteriores do autor. É um livro para rir —às gargalhadas, às vezes— e chorar.

O tom delicado de quem conta, e não escreve, uma história, observado por diferentes leitores de sua obra, resiste à prova da grande extensão.

Encontrar essa voz, diz Zambra, lhe “permitiu renunciar a muitas coisas artificiais que tentava”. Para o escritor, esse é também o tom do “diálogo verdadeiro”, em que se pode falar “sem que o outro te julgue e sem julgar o outro”.

Para Del Castillo, que traduziu “Poeta Chileno”, o romance traz um Zambra “em estado de graça”. Se nos livros anteriores, como sugere o tradutor, os personagens escreviam para rebobinar e inventar o passado ou impedir o futuro, neste “escrevem para viver”.

Como Gonzalo, o padrasto do romance, Vicente, o enteado, vai aspirar a ser poeta, a se inscrever no “mito da poesia chilena” —um traço de união que não depende do sangue.

“É o mito em que me formei. Não queria escrever romances, a poesia era o espaço ao que me interessava pertencer.” Muitos de seus amigos, como ele próprio, “não vinham de famílias ligadas à cultura”. “Crescemos em casas sem biblioteca e ficamos loucos com a poesia.”

Nos anos 1990, quando começa o romance, “havia essa sensação prematura de que no Chile já estava tudo bem”, diz o autor. “Confundíamos a democracia com a adolescência. Éramos um país adolescente. Deixavam que chegássemos tarde em casa, que fumássemos. Parecia liberdade.”

O telefonema com Zambra chega ao fim. A jornalista sente que falaram muito da obra e pouco do homem. Mas o homem está ocupado, não tem tempo para outra conversa.

Ela então envia ao escritor um questionário em múltipla escolha sobre seus hábitos cotidianos. O humor funciona. No mesmo dia, recebe respostas num áudio de 22 minutos.

A gravação permite a ela imaginar que Zambra, ao ler suas perguntas, por volta das 7h30 da manhã no México, estaria tomando um café sem açúcar. No Chile, onde “prevalecia o Nescafé”, o adoçava. “No fundo era uma desculpa para consumir açúcar.”

Àquela altura, também, já terá alimentado o filho. Ele passou a cozinhar mais, em parte por causa do menino, e gosta de fazer seu café da manhã. Assume ser guloso, mas diz que tenta comer melhor. Gosta de salmão, e sua voz fica suspirosa ao falar de doces.

Antes era notívago. Agora, ocupado com o menino, escreve, como e quando dá, ao longo do dia. Em um caderno, em qualquer papelzinho, no computador. Mas, se estiver trabalhando em um livro, aproveitará todo o tempo que tiver livre para escrever.

Mantém diários —depois de ser pai, erráticos. Arrumando a estante, deu com um desses cadernos, em que anotou “não posso pesar tanto”. “Colocava ali o peso, que era muito menos do que eu peso agora.” E ri.

O Chile lhe chega pela boca, ao preparar pratos seguindo as dicas e livros de receitas de um grande amigo e compatriota, o chef Juan Pablo Mellado.

Mas não só. O exílio lhe deu também uma nova aproximação ao futebol. Seus livros não escondem que é torcedor do Colo-Colo. No México, não conseguiu adotar um time.

Adquiriu o curioso costume de prestar atenção em times “pelos chilenos que jogam neles” —mesmo se, admite rindo, “é um pouco absurdo ver o futebol assim, como um esporte individual, em que só o que importa é que jogue o chileno, que o chileno faça um gol e o resto dá na mesma”.

Seu país tem também uma representação física. Isso ele não conta à jornalista; ela descobre num vídeo de uma rede de livrarias, em que ele e a mulher falam de sua biblioteca.

No vídeo, ele explica que os livros chilenos não estão ali, naquela sala. Habitam um cômodo fora da casa. Esse quartinho, onde se refugia para escrever, ele chama de Chile.

A última pergunta é sobre entrevistas. Ele hesita entre a alternativa A, que diz que “são parte de seu trabalho”, e a B, “um tormento”. “Um tormento, sim”, ao qual cede por respeito aos editores. “Mas não neste caso. Eu me diverti.” Pode ser ficção, mas a jornalista prefere ver nela a verdade.

‘Ficção 2006-2014’ e ‘Poeta Chileno’

  • Autoria Alejandro Zambra
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Josely Vianna Baptista, José Geraldo Couto e Miguel Del Castillo
  • Quanto R$ 79,90 (560 págs.) e R$ 74,90 (432 págs.), respectivamente; R$39,90 (cada ebook). Em pré-venda
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