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Quem é Chris Ware, astro dos quadrinhos que vê a empatia como seu maior superpoder

'Rusty Brown', que chega agora ao país, é a epítome da produção do autor premiado pelo conjunto da obra na França

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Trecho da HQ 'Rusty Brown', de Chris Ware, publicada no Brasil pela Companhia das Letras Divulgação

São Paulo

Quando o quadrinista Chris Ware fala sobre sua compreensão da linguagem das histórias em quadrinhos como “uma arte da memória”, ele se vê criança, sentado no fundo de uma sala de aula, pensando sobre a velocidade da luz.

Hoje aos 53 anos e um dos autores de HQs mais influentes e premiados do mundo, ele diz refletir desde a infância sobre a passagem do tempo. A percepção do presente como algo que acabou de acontecer e do futuro como algo atualmente em curso levaram Ware ao entendimento de tudo que está à vista dele como uma fabricação.

“Essas sensações ficam mais evidentes quando nos envolvemos com uma obra de arte potente e ela ‘muda o jeito como vemos o mundo’”, diz ele, em entrevista por email. “Nunca ‘vemos’ o mundo, mas, de certo modo, estamos sempre nos lembrando do mundo. Os quadrinhos se abastecem desse sumário da sensação e da sua reformulação sintética, mas viram a coisa do avesso e transformam em expressão. (Se é que isso não soa um absurdo de pedante; desculpe.)”

Recém-lançado em português pela Companhia das Letras, "Rusty Brown" é uma espécie de epítome da produção de Ware até aqui. Suas 356 páginas são parcialmente protagonizadas pelo menino que dá nome ao livro e inicialmente ambientadas em Omaha, cidade natal do autor, no estado americano de Nebraska, no ano de 1975.

A HQ reúne os vários capítulos avulsos da obra lançados por Ware desde 2000, em diversas publicações nas quais colabora e em sua Acme Novelty Comics —publicação sem periodicidade editada por ele desde 1993. O “Volume 1” presente no subtítulo original da obra sugere uma continuação sem previsão de lançamento pelo autor.

Em meio a várias idas e vindas temporais, Rusty Brown tem suas origens apresentadas em trechos que focam o passado do pai dele como autor de ficção científica e seu futuro parcialmente mostrado em tramas paralelas centradas em personagens coadjuvantes —entre eles uma versão de Ware que é professor de artes no colégio em que o personagem principal estuda e seu pai dá aula.

Um dos coadjuvantes que tomam protagonismo da trama é Jordan Lint, que faz bullying com Brown no colégio. Lint tem sua vida narrada, do nascimento à morte, em uma sequência de 72 páginas com alguns dos grafismos e designs de páginas mais ousados já apresentados por Ware.

O quadrinista atribui essas várias contraposições de perspectivas de seus personagens a uma busca constante por empatia. “A empatia é o sentido mais importante que o ser humano pode aperfeiçoar; é o único ‘superpoder’ que temos”, diz o autor.

“É coisa para a vida toda, que não dá para desistir se quisermos superar nosso histórico vergonhoso de violências, imposições e insensibilidades. Sendo escritor, acho que o jeito mais fácil de ter empatia é me esforçar para entender e ver a pessoa de todos os ângulos (e isso é o oposto do que o Twitter tende a nos incentivar, e é por isso que eu odeio o Twitter).”

Doze anos após o lançamento de "Jimmy Corrigan - O Menino Mais Esperto do Mundo" em português, "Rusty Brown" é apenas o segundo álbum de Ware publicado no Brasil. A obra chega às livrarias no ano em que o autor foi premiado com um reconhecimento pelo conjunto da obra do tradicional Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, na França.

O anúncio da vitória de Ware fez referência aos seus 22 prêmios Eisner, a honraria máxima da indústria de HQs dos Estados Unidos, e também citou sua obra-prima até aqui, "Building Stories", uma caixa com 14 publicações em diferentes formatos.

No início de sua carreira, Ware foi autor de tiras de jornais em Austin, cidade onde cursou artes na Universidade do Texas. Ele despontou na cena de quadrinhos autorais americana no fim dos anos 1980 ao chamar a atenção de Art Spiegelman, autor do clássico "Maus", e Françoise Mouly. Coeditores da lendária revista Raw, eles o convidaram para contribuir com a publicação.

Mais de três décadas depois, Ware se diz surpreso com as transformações da percepção pública em relação aos quadrinhos e também com as mudanças de suas próprias compreensões.

“A linguagem dos quadrinhos em si também anda se provando mais resistente e expressiva e abrangente do que eu achei que fosse; quando era mais moço, eu só queria saber se ia conseguir me fazer sentir e, com sorte, fazer o leitor sentir alguma coisa que não uma diversão bobinha. Fiquei muito surpreso ao descobrir que quadrinhos conseguem transmitir não só tristeza, mas também tudo que existe entre diversão e tristeza”, afirma Ware.

Com o passar dos anos, Ware acabou se tornando o principal representante de uma geração de quadrinistas americanos caracterizada principalmente por obras propositivas e reflexivas sobre o potencial da linguagem das HQs.

Em 2002 ele foi o primeiro quadrinista com uma exposição no museu Whitney, de Nova York. Na mesma época, fez suas primeiras capas para a New Yorker, também a convite de Françoise Mouly, editora de arte da revista.

Entre as ponderações mais célebres de Ware sobre a linguagem dos quadrinhos, estão possíveis paralelos entre HQs e músicas.

“Sempre que tento falar de música e quadrinhos, tento chegar na sensação inefável que os quadrinhos produzem na minha mente. Penso nela como uma espécie de ‘música silenciosa’, que capta os ritmos do gestual humano que ‘ouvimos’, inconscientemente, quando vemos a pessoa se movimentar, algo similar ao que entendemos como música e, acho eu, retoma a experiência do mundo que pode ser até pré-linguística, quando nos comunicávamos por gestos e urros —música e dança, basicamente.”

Ware conta ter retomado recentemente alguns interesses de sua época de faculdade. Ele tem conciliado suas HQs e ilustrações com práticas de escultura e carpintaria. “Tem alguma coisa na sensação de se sentar à mesa, olhar para a folha em branco e imaginar lugares e pessoas que não existem ou não existem mais que pode ser cansativo e deprimente às vezes”, reclama o autor sobre sua rotina como quadrinista e ilustrador.

“Quando se trabalha com madeira ou ‘construindo coisas’, a necessidade de solucionar problemas, a meu ver, é o antídoto perfeito para a opressão da prancheta. E acontece tanta autoanálise quando eu boto o lápis no papel que a parte tátil de medir e encaixar as coisas na madeira elimina grande parte, talvez até erradique completamente, essa matutação corrosiva", diz ele. "Além do mais, esculpir é simplesmente mais divertido.”

Rusty Brown

  • Preço R$ 159,90 (356 págs.)
  • Autor Chris Ware
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Caetano Galindo
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