Quem é Lucas Arruda, que faz pinturas de céus e praias vendidas por milhões

Um dos principais artistas brasileiros abre sua maior exposição individual no país na Fundação Iberê Camargo

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Detalhe de obra da série 'Deserto-Modelo', de Lucas Arruda Everton Ballardin

Porto Alegre

Ele põe para tocar um disco de Billie Holiday nos fones de ouvido. Se agacha, molha um rolinho de pintura numa vasilha com tinta branca e em seguida estuda o ambiente. Segundos depois, passa de forma meticulosa o rolo úmido de cima a baixo e de um lado para o outro na parede à sua frente, completando muito lentamente o desenho de um quadrado.

De tão delicada, a tinta branca deixa a forma geométrica quase invisível, como se ela se confundisse com a parede do museu. Sem tirar os fones de ouvido, Lucas Arruda se afasta e observa o resultado, antes de começar a segunda parte da obra —posicionar um quadrado de luz, formado a partir da emissão de um projetor, acima do quadrado de tinta, e por fim ajustar os tamanhos de ambos.

"A ideia do trabalho foi criar um ideograma da paisagem. No quadrado superior, a luz faz alusão ao céu, ao imaterial, ao sonhado, imaginado ou fantasioso. Ao passo que o quadrado pintado sugere o terreno ou material, o racional, físico, tátil", diz o artista sobre a obra, em texto no catálogo da exposição "Lugar Sem Lugar", aberta há pouco na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, e que fica em cartaz até meados de janeiro.

Não por acaso, a obra, feita pelo artista no dia anterior ao vernissage, é a primeira com a qual o visitante depara na primeira grande mostra individual de Arruda num museu brasileiro. Boa parte dos 70 trabalhos da exposição em Porto Alegre são paisagens que exigem do espectador certo grau de abstração, dado que o pintor preenche suas telas da série "Deserto-Modelo" com vazios que lembram céus —ora plácidos como um fim de tarde, ora furiosos como se chovesse— e uma linha do horizonte discreta.

"O olho precisa de pouquíssimos elementos para construir uma paisagem", afirma Lilian Tone, a curadora da mostra. Ela acrescenta que as paisagens de Arruda, pintadas de memória, desprovidas de pontos de referência geográficos específicos, são mais abstratas do que figurativas.

Comentando seu trabalho enquanto caminha pelo espaço expositivo do museu, o artista conta não se ater necessariamente a pintar paisagens, mas sim a certa luminosidade.

"Principalmente a maneira com que essa luz vem, com que essa luz chega em você, essa luz meio difícil, que não se dá por completo. Você vê que nas pinturas antigas eu já tinha uma coisa de paleta tonal onde nada fala muito alto, assim como a minha luz tem essa sutileza, essa delicadeza da luz. Um termômetro de quando uma pintura está pronta é a maneira com que a luz está vibrando, mais do que a estrutura da paisagem", ele conta.

Arruda lembra como referência a escola de Barbizon, movimento de artistas do século 19 que se inspiravam na natureza do interior da França para realizar quadros de alta carga dramática —e luz idem. Ele obtém a luz de suas pinturas pela remoção de camadas de tinta, e não com a adição de tinta branca. O excesso de pigmento fica acumulado de propósito nas bordas de algumas telas, como testemunha do processo. "Uma passada de pano vira uma nuvem, uma direção de pincelada vira um movimento de vento para o nosso olho", acrescenta ele.

Aos 38 anos, o paulistano, representado desde 2009 pela galeria Mendes Wood DM, já tem obras nas coleções de alguns dos principais museus do mundo, como a Tate Modern, em Londres, o Pompidou, em Paris, o Stedelijk, em Amsterdã, e a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, além de uma fila de colecionadores interessados em desembolsar uma fortuna por suas telas.

O pintor em seu ateliê, em São Paulo - Jason Schmidt

Não é incomum que suas pinturas etéreas de céus, praias, desertos e paisagens ultrapassem R$ 1 milhão em leilões internacionais, atingindo às vezes valores bem mais altos. Uma tela de 2013, por exemplo, medindo 70 centímetros por 82 centímetros, grande em relação a outras da mesma série, foi vendida no último dia 15 num pregão da casa britânica Phillips por £ 352,8 mil, cerca de R$ 2,7 milhões.

Arruda começou a ganhar destaque em meados da década passada, como parte de uma geração de artistas que retomaram a tradição da pintura e que hoje são muito bem cotados no mercado, a exemplo de Ana Elisa Egreja, Marina Rheingantz, Rodolpho Parigi, Rodrigo Bivar e Regina Parra. Quase todos foram alunos de Paulo Pasta e tiveram o pintor e gravador Rodrigo Andrade como conselheiro.

Apadrinhado por uma galeria conhecida por bombar novos talentos, a ascensão do artista foi rápida. Arruda já expôs em espaços importantes de outros países, como o museu Fridericianum, em Kassel, na Alemanha, e a galeria Cahiers d’Art, em Paris.

Questionado sobre por que acha que seu trabalho caiu nas graças dos curadores de fora do Brasil, ele diz não saber. A curadora afirma que talvez não haja uma razão específica. Quem arrisca uma resposta é Paulo Pasta, ex-professor de Arruda no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, e de quem o artista se tornou assistente e interlocutor.

"A pintura dele alude ao passado grandioso da pintura, mas não deixa de fazer sentido no agora. Quando ele acende essa luz visionária dentro da tela dele, essa luz nos ajuda a perceber a obscuridade e a dissensão do agora, dos nossos tempos", afirma Pasta, acrescentando que Arruda sempre teve uma linguagem muito própria e "um norte pronto, perseguiu algo dele".

O status de Arruda como um dos pintores mais importantes em atividade é mais do que suficiente para que um grupo de personalidades do mundo das artes, entre as quais seu galerista, Felipe Dmab, e o superintendente da Fundação Iberê Camargo, Emilio Kalil, fiquem muitas horas ao seu redor no museu em Porto Alegre, a postos para atender seus pedidos e tirar dúvidas.

Arruda quer saber deles se é possível enxergar o quadrado de luz na parede, se a pintura de baixo está simétrica em relação à de cima. E explica com paciência a todos que ali estão como funciona o projetor de luz, uma engenhoca alemã chamada "dedolight" usada em museus para delimitar com precisão uma área a ser iluminada. Nas horas que antecedem a abertura da exposição que ocupa três salas do museu, ele parece cansado e se diz nervoso.

Obra da série "Deserto-Modelo" representa uma vista da Mata Atlântica a partir do quarto de uma casa na Barra do Una - Everton Ballardin

"Lugar Sem Lugar" mostra todas as fases dos pouco mais de dez anos de carreira de Arruda, incluindo telas antigas e menos conhecidas, algumas das quais produzidas enquanto ele estudava artes plásticas na faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, bacharelado que concluiu em 2009.

Nos primeiros anos, ele pintava vasos e copos dispostos cuidadosamente no espaço, como o italiano Giorgio Morandi. Os trabalhos daquela época, informados por Volpi e pelos pintores do ateliê Casa Sete, segundo o artista, trazem quase sempre uma faixa de tinta horizontal na composição pictórica, que funciona como aparador ou mesa, numa natureza morta, ou rua, numa situação urbana, afirma a curadora Lilian Tone.

Em seguida, o artista se volta à representação de uma igreja e das árvores ao seu redor. Chamada "Chiesa", igreja em italiano, essa série foi inspirada na vista que Arruda tinha de seu quarto em Siena, na Itália, onde passou uma temporada de meses numa residência artística em 2007.

Conforme a série se desenvolveu, o artista passou a pintar a igreja cada vez menor e mais distante e a remover os elementos figurativos do quadro, até que tudo desaparece e dá lugar a uma paisagem.

O que conecta as pinturas ao longo dos anos é a faixa horizontal, no papel de elemento organizador da composição.

O artista a transpõe também para um outro suporte, um vídeo em preto e branco de pouco mais de quatro minutos chamado "Neutral Corner". É uma edição de uma das lutas de boxe mais violentas da história, que o artista conta ter feito durante um período numa residência artística na França em que se sentia bastante melancólico.

Em 1962, Emile Griffith nocauteou Benny Paret numa partida transmitida ao vivo pela TV, a ponto de o boxeador cair e ter de ser levado para o hospital, onde morreria pouco depois. As cordas de contenção do ringue, sempre em proeminência no vídeo de Arruda, fazem as vezes das linhas horizontais. Fã de boxe e praticante de pugilismo há mais de uma década, o artista enfatiza no vídeo a beleza "da queda desse lutador, o jogar a toalha, se deixar cair", ele diz.

"É muito pitoresca a queda dele. Lembra muito a passagem bíblica da deposição, a retirada do Cristo da cruz. Tem cenas que, se eu pegar umas pinturas, você vê o braço dele, o jeito que colocam ele no chão, a hora que ele está com o braço na corda é igualzinha à pintura do [pintor renascentista] Rafael da deposição."

A música da trilha sonora, de autoria da violoncelista islandesa Hildur Guðnadóttir —que mais tarde comporia a trilha para o filme "Coringa", pela qual ganharia o Oscar no ano passado— foi escolhida pelo artista por ser executada num instrumento de cordas, fazendo assim a ligação com a linha horizontal das suas pinturas.

A obra com o quadrado de luz e outro de tinta; esta montagem foi feita na galeria Mendes Wood DM, numa exposição do artista em 2016 - Ding Musa

Além da individual na Fundação Iberê Camargo, Arruda está com uma exposição em cartaz na nova sede de sua galeria, em São Paulo, até o início de novembro. "Assum Preto", batizada com o nome de uma música de Luiz Gonzaga, traz algumas pinturas da sua série da mata atlântica, realizadas a partir da vista de um quarto na casa de seu pai na Barra do Una, no litoral paulista.

A evocação aqui é a lenda indígena do curupira, o guardião das florestas, diz o artista, descrevendo matas como locais acolhedores e perigosos ao mesmo tempo.

Para Pasta, "a aura de metafísica que envolve essas florestas não as livrariam do perigo da destruição física, por exemplo, já que são florestas brasileiras". Ele acrescenta que Arruda parece querer proteger essas matas. "Elas são um umbral. Você nunca vai entrar nelas. Nesse sentido, é o avesso de um cartão postal."

A mostra em São Paulo tem também vários de seus monocromos, nos quais se pode ver outra característica frequente em seu trabalho —o uso do espaço negativo. Arruda deixa aparecer e incorpora a própria tela da pintura nas composições, de modo que a cor do quadro é determinada pela cor do tecido, que ele compra já tingido nas lojas da rua 25 de Março, na capital paulista.

Feitos num processo que dura meses, em paralelo a seus outros trabalhos, os monocromos são suas maiores telas, formadas por várias demãos de tinta "rarefeitas e aguadinhas", descreve o artista.

Tanto em sua obra quanto no decorrer da conversa, o pintor faz diversas referências ao divino, ao imaterial e a lendas. Mas, filho de pais ateus, Arruda conta não ter tido formação religiosa nem sido batizado. Seu interesse é pelo simbolismo das religiões.

Em suas telas, sempre desprovidas da presença humana ou animal, ele diz querer dar um "caráter sagrado ao vazio".

"Acho que é algo muito importante que às vezes a gente não saca, a gente faz de tudo para preencher [o vazio]. Mas isso [o vazio] faz parte da vida, da existência."

Lugar Sem Lugar

  • Quando Até 16 de janeiro; de quinta a domingo, das 14h às 18h
  • Onde Fundação Iberê Camargo - av. Padre Cacique, 2000, Porto Alegre.
  • Preço Grátis às quintas; nos demais dias, R$ 20 - necessário agendamento nos dias pagos
  • Link: https://bileto.sympla.com.br/event/66447/d/88776

Assum Preto

  • Quando Até 6 de novembro; de segunda a sábado., das 11h às 19h
  • Onde Mendes Wood DM - r. Barra Funda 216, São Paulo
  • Preço Grátis
  • Link: https://mendeswooddm.com/pt

O jornalista viajou a convite da Fundação Iberê Camargo.

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