Descrição de chapéu Filmes

Quem é o cineasta espanhol parceiro de Miró e admirado por Almodóvar e Glauber

Pere Portabella é de geração vanguardista de Barcelona que unia nomes como o poeta Joan Brossa e o pintor Antoni Tàpies

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

bastidores de filmagens

O cineasta espanhol Pere Portabella durante as filmagens de 'Nocturne 29', lançado em 1968 Divulgação

Rio de Janeiro

Atrás das árvores da estrada, surge o cruzeiro do memorial dos nacionalistas mortos na guerra civil espanhola, no Vale dos Caídos, a 40 quilômetros de Madri. Nos planos iniciais, a câmera chega à abadia e avança até a antiga tumba do ex-ditador espanhol Francisco Franco. Em 1976, o documentário “Informe Geral”, de Pere Portabella, registrava a lápide do generalíssimo antes de ouvir as principais vozes da transição democrática da Espanha.

Hoje aos 94 anos, confinado numa casa de campo na Catalunha, Portabella reconhece que os despojos do autoritarismo não foram totalmente varridos. “Neste país nos custa muito sair do que foi a guerra civil. Isso faz muitos anos e ainda estamos com dificuldades para acabar de enterrar o general Franco”, reconhece o cineasta, por telefone.

Familiares de Francisco Franco carregam o caixão do ditador em outubro de 2019 - Juan Carlos Hidalgo/AFP

De uma geração vanguardista da Barcelona do pós-Guerra, Portabella se manteve na radicalidade artística dos seus anos de formação, quando participou do grupo Dau al Set, do poeta Joan Brossa e do pintor Antoni Tàpies –por sua vez, amigos do brasileiro João Cabral de Melo Neto, vice-cônsul na capital catalã, na década de 1940. Pouco conhecida no Brasil, mesmo entre os acadêmicos, sua obra ganhou uma mostra em 2005, promovida pelo Instituto Cervantes de São Paulo. Uma parte dela acaba de entrar para o catálogo da plataforma de streaming Mubi.

Fundador da produtora Films 59, Portabella planejou o regresso de Luis Buñuel à Espanha, para rodar “Viridiana”, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1961. A história incestuosa motivou acusações de católicos aos burocratas franquistas –a igreja atacou a condescendência do Estado espanhol com Buñuel, sacrílego reincidente; em aperto, a ditadura renegou a nacionalidade do filme e confiscou o passaporte de Portabella.

“A grande contestação foi produzir três filmes nos anos 1960. ‘Los Golfos’, de Carlos Saura, ‘A Motoreta’, de Marco Ferreri, e depois o escândalo de ‘Viridiana’, com Buñuel. Foi a minha declaração pessoal”, ele afirma.

Em 2019, o partido de extrema direita Vox virou a terceira força política do Parlamento espanhol. Portabella vincula a ascensão dos ultranacionalistas e a própria onda direitista mundial à influência do ex-presidente americano Donald Trump e à incapacidade da União Europeia de consolidar um bloco moderado entre China e Estados Unidos.

“Passamos à democracia depois de uma ditadura difícil. Tudo o que vem de herança tende a bloquear a democracia. Há esse conceito de nacionalismo patriótico, do valor do Estado com seu território, e que você está submetido a isso. É uma simplificação brutal. Temos que voltar a uma dialética capaz de conviver entre todos os cidadãos. As pessoas estão cansadas, arrependidas e desconectadas das instituições. Há uma necessidade de gritar.”

“Em parte, a explicação é o passado recente do franquismo. Alguns dizem ser a solução do problema. Uma solução antidemocrática. Confio que a Espanha vai pôr o Vox em seu lugar, se aparecer uma direita liberal capaz de equilibrar a situação. No caso do Vox, eles não propõem um projeto. Ameaçam, simplesmente”, acrescenta.

Em 1977, Portabella abandonou a câmera e assumiu o mandato de senador, pressionando pelo fim da pena de morte na nova Constituição espanhola. O longa “Ponte de Varsóvia”, de 1989, marcou seu retorno ao cinema com uma crítica ao cinismo dos intelectuais europeus depois da queda do Muro de Berlim. “Faz muitos anos que não aparece um grande compositor. Porque já não existe o silêncio”, diz um personagem, num coquetel literário ostentoso.

Associados ao antifascismo, três filmes de Portabella enfrentam a questão da liberdade das imagens diante das tiranias da censura estatal e dos grandes estúdios, se filiando à imaginação não linear do primeiro Buñuel, aquele do surrealismo de “Um Cão Andaluz” e “A Idade do Ouro”.

Com a italiana Lucia Bosè, atriz de filmes de Buñuel e Antonioni, o longa “Nocturno 29” inscreveu a subversão no título. Em 1968, o número remetia ao 29º aniversário da ditadura de Franco. O desprezo ao enredo, a fotografia de fortes contrastes, o silêncio predominante e a opção por elipses constroem a atmosfera opressiva. Numa sequência, um homem retira seus olhos de vidro enquanto assiste a uma parada militar na TV.

Obras-primas dessa fase, “Cuadecuc, Vampir” e “Umbracle”, de 1970, aprofundam a alegoria da sociedade fascista. A associação entre franquismo e vampirismo se impôs com a presença do ator britânico Christopher Lee, de caninos famosos em fitas de terror. Lee foi à Espanha para atuar em “Drácula - O Príncipe das Trevas”, do diretor Jesús Franco, que autorizou Portabella a fazer um filme mudo sobre os bastidores, antes do gênero making of ficar popular.

“Cuadecuc, Vampir” expõe o clima sombrio do país sem deixar de homenagear o “Nosferatu” de F. W. Murnau. Christopher Lee aceitou fazer improvisos para “Umbracle”, no qual recita “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, e assiste ao sequestro de um militante político numa rua de Barcelona. O filme radicaliza a proposição de vanguarda –Portabella rejeita o selo “experimental”– e envolve documentário, ficção, imagens do cinema oficialista e denúncia da censura.

Nascido numa família abonada e tradicional da Catalunha, o cineasta se engajou em movimentos culturais aliados à esquerda logo após a guerra civil. “Não podemos abdicar da nossa subjetividade. Quando nascemos, viemos de um contexto, de uma comunidade e de famílias concretas”, ele observa. “Ao articular arte e política, nascem os contextos que permitem evoluir de outra maneira. Temos que sair do nosso eu e tentar articular uma relação com os outros, que são os que nos permitem crescer”.

“Eu saí da adolescência e encontrei um entorno de vanguardas. Como cineasta, o mais importante era utilizar a linguagem. Mas a linguagem não é o que você fala. A linguagem é a primeira fase para pensar e desenvolver uma história para se envolver com os outros. Para isso, tive que rechaçar o que significavam as indústrias multinacionais de cinema, que sempre têm necessidade de retorno de capital para os investidores e de controle ideológico dos filmes”, conta Portabella.

O diretor admite que os cineastas espanhóis reprimiram a influência de Buñuel, à exceção de um só. “O único fui eu”, sorri. “Digo não com vaidade, mas porque sou o único. Se você olha os meus filmes, há Buñuel. Há ‘A Idade do Ouro’, sem dúvida. São os filmes que Buñuel fez com Dalí. Ninguém, no cinema espanhol, se colocou partindo disso.”

Seus curtas cobrem a pintura, a música, a poesia e a arte sacra da Catalunha. Entre seus quatro filmes sobre o mestre catalão, “Miró l'Altre” e “Miró Aidez l'Espagne”, de 1969, se destacam. Mas seu olhar alcança a Andaluzia em “Mudanza”, de 2008, nascido de um convite do curador suíço Hans Ulrich Obrist para intervir na residência da família do poeta Federico García Lorca, em Granada. Na obra, quadros e móveis são retirados da casa-museu na Huerta de San Vicente. O vazio acentua a presença espectral de Lorca.

“Miró l'Altre” vai além do registro de uma exposição no Colégio dos Arquitetos de Barcelona. Chamado a documentar a mostra, Portabella enlouqueceu os anfitriões com a proposta de raspar o mural de Miró na fachada de vidro. “Disse a Miró que 'será câmera na mão, você não precisa parar para nada'. Quando acabar a exposição, nós apagamos o mural. Ele abriu os olhos. ‘O que você falou?’ Eu disse 'apagamos o mural com a equipe de limpeza’. Miró gritou ‘fantástico’.”

De passagem por Barcelona, para a produção de “Cabezas Cortadas”, Glauber Rocha vibrou ao saber do gesto autoprofanador de Miró. Em 1970, o diretor brasileiro elogiou “Nocturno 29” e fez uma ressalva. “O filme é excelente, tem silêncios impressionantes. Mas aquele diálogo é lastimável.” Ele se referia à cena do bosque escrita por Joan Brossa.

“Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, influenciou mais Portabella. “É um dos filmes que não me saíram da memória. Quando fiz ‘Nocturno 29’, filmei as pedras negras de Cadaqués. Não é a mesma coisa, mas há esse sentido de usar as texturas naturais superexpostas. Meus filmes dão peso à textura.”

O diretor nonagenário aproveita a pausa da pandemia para estudar astrofísica, como parte da criação de seu próximo trabalho. “As ideias servem para um processo de abertura que vai gerar um espaço amplo com outras ideias, outras sensações, outros silêncios, que são um filme”, afirma. “O Silêncio Antes de Bach”, de 2007, exemplifica essa visão no voo atemporal sobre o legado de Johann Sebastian Bach.

Em 2015, seu documentário “Informe Geral II” acolheu as vozes da nova Espanha a partir de um debate no museu Reina Sofía, escancarando as rachaduras da democracia –o triunfo do neoliberalismo, o desemprego, a crise do separatismo catalão e a tensão nacional que revigoraria os vampiros da ultradireita. Portabella prossegue em sua vigília. “Penso que não sou um historiador no sentido de que me preocupo com a história, salvo porque quero intervir na história.”

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.