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Quem é Saidiya Hartman, que revoluciona a história que se conta da escravidão

Frustrações da pesquisadora em viagem a Gana originaram 'Perder a Mãe', que mistura ensaio acadêmico e relato pessoal

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colagem de figuras ligadas a áfrica

Detalhe de obra de Rosana Paulino, da série 'Atlântico Vermelho', de 2016, que ilustra a capa de 'Perder a Mãe', da americana Saidiya Hartman, que sai pela Bazar do Tempo Acervo Rosana Paulino/Divulgação

São Paulo

Quando viajou a Gana para pesquisar as cicatrizes da escravidão, a americana Saidiya Hartman tentava fazer também uma escavação muito pessoal das próprias raízes. Se buscava alguma sensação de pertencimento, encontrou algo bem diferente. "Nunca me senti tão só em toda a minha vida", confidencia a um amigo a certa altura do livro "Perder a Mãe".

Não era esse o plano, mas a obra acabou construída em primeira pessoa e repleta de relatos íntimos sobre sua história familiar. Ganhou ar de romance, mas não se engane, é um ensaio acadêmico robusto, que acresceu à pesquisa a necessidade consciente de ter sua autora como uma espécie de personagem.

Professora da Universidade Columbia, em Nova York, tornada uma das principais referências intelectuais da diáspora africana, Hartman começa agora a ser publicada no Brasil —e aos montes.

"Perder a Mãe" sai pela Bazar do Tempo, que também vai publicar "Vênus em Dois Atos" e "Cenas de Sujeição" em coedição com a Crocodilo. A Fósforo, que já editou o ensaio "O Fim da Supremacia Branca", prepara seu premiado "Vidas Rebeldes, Belos Experimentos" para o ano que vem.

saidiya hartman
A escritora americana Saidiya Hartman, que publica seu 'Perder a Mãe' no Brasil pela Bazar do Tempo - Divulgação

Não é preciso avançar muito na leitura para reparar na sua distinção estilística, que se emancipa da objetividade acadêmica em prol de um tipo diferente de produção de pensamento —nascido da criatividade e da frustração.

Em Gana, Hartman queria colher material para um mapeamento detalhado das rotas escravistas africanas. "Mas a extensão dos registros era tão pequena que eu percebi que realmente precisava falar sobre a minha experiência, ao me debater com o que eu sabia e o que eu nunca poderia saber. As lacunas da escravidão que jamais seriam preenchidas", conta a autora.

"E eu tinha que levar em conta os aspectos afetivos da produção de conhecimento", afirma. "Pensar o que significa a frustração de entrar numa masmorra e não encontrar nenhuma informação além de ruínas e resíduos."

Outro abismo importante se revelou à escritora só quando ela cruzou o Atlântico —a colossal diferença entre a abordagem do legado da escravidão dentro e fora da África. Ao visitar os principais sítios do tráfico ganês, ela narra que sentia ao redor "olhares temperados com desdém, diversão ou piedade –outra estadunidense aqui para chorar pelo que aconteceu há tanto tempo".

Aprender que muito da identidade em Gana "dependia do silenciamento de um passado no qual elites vendiam plebeus", enquanto a solidariedade que Hartman sentia com outras pessoas negras dependia precisamente de criar uma memória da escravidão, despedaçou "qualquer ilusão de uma unanimidade de sentimento no mundo negro".

As reações a "Perder a Mãe" foram fortes, diz Hartman, porque as pessoas preferem "histórias arrumadinhas" ao desconforto de uma narrativa que incorpora certa desordem. Um sintoma disso é a pujante indústria turística que Gana ergueu para atrair afro-americanos em busca de suas raízes, algo que no argumento da autora só servia para calar o passado.

"Um guia nos levou a um tour dos pontos importantes do escravismo em Benim, e tudo termina numa estrada cheia de bandeiras dos Estados Unidos. Para uma americana, chegar à África e ser recebida por isso foi uma enorme dissonância cognitiva."

Segundo a pesquisadora, aquelas rotas turísticas foram todas "moldadas pela linguagem do Departamento de Estado dos Estados Unidos" —ela relata até excursões à Gâmbia e ao Senegal organizadas pela rede McDonald's.

"Ou seja, o mesmo país que não quer lidar com o legado da escravidão no seu próprio território faz isso no país dos outros, modelando os termos da história do colonialismo."

A pesquisadora lembra que o Juneteenth, data que celebra o fim da escravidão, se tornou oficialmente um feriado americano há pouco. "Os parlamentares republicanos mais racistas e reacionários apoiaram essa medida ao mesmo tempo em que tentavam tirar direitos dos eleitores negros. Eu não preciso de um feriado nacional sobre a escravidão enquanto ainda estou sofrendo as suas consequências brutais. Que memória é essa que você quer celebrar?"

O tom ecoa uma desilusão que toma conta de boa parte de "Perder a Mãe", escrito em 2006 e imbuído da sensação de que a janela para mudança significativa já tinha se fechado.

"Nos anos 1960 ainda era possível acreditar que o passado podia ser esquecido, pois parecia que o futuro, finalmente, havia chegado", diz um trecho do livro. "Enquanto na minha época a impressão do racismo e do colonialismo parecia quase indestrutível."

Mas, conforme a obra avança, a impressão de que qualquer projeto de futuro está fadado ao fracasso se dissipa, algo que Hartman reforça 15 anos depois. "O começo do livro discute o que uma certa imaginação política falhou em produzir, falo do panafricanismo, o movimento por direitos civis. Quis sublinhar os limites desses projetos. Mas no meu último capítulo, particularmente, penso os novos termos da nossa imaginação de liberdade."

Vale contar um caso pessoal da escritora para ilustrar o movimento que ela propõe.

Nascida há 60 anos como Valarie Hartman, durante a faculdade ela mudou seu nome para Saidiya —a pronúncia é "sadia", com o "i" alongado—, adotando uma palavra de origem suaíli para contornar os impulsos europeizantes de sua mãe. Mais tarde percebeu que o novo nome também era "uma ficção de alguém que jamais seria —uma garota sem a mácula da escravidão e a decepção como herança".

A história de Hartman se afina a sua teoria de que é preciso construir uma identidade que não busque ignorar a chaga do escravismo nem retornar para um idílio anterior à violência colonizadora —mas que nasça a partir da perda fundamental produzida pela escravidão.

"O assassinato da memória criou também um novo sentido de identidade", diz ela, sorrindo da sala de sua casa. "A consciência negra é inseparável de uma imaginação da liberdade, que é um presente para o mundo. É uma cultura moderna que tem a mesma magnitude do terror que a produziu."

Perder a mãe: Uma jornada pela rota atlântica da escravidão

  • Quando Lançamento em 1º/11
  • Preço R$ 69,90 (364 págs.)
  • Autor Saidiya Hartman
  • Editora Bazar do Tempo
  • Tradução José Luiz Pereira da Costa
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