Descrição de chapéu Artes Cênicas

Atores não querem ser adestrados, diz Paulo Betti sobre o caso Fátima Toledo

Movimento contra comportamentos abusivos nos sets de filmagem pede revisão de velhos métodos de interpretação

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São Paulo

Dizia o ator Plínio Marcos que ator faz qualquer coisa por um papel, "até se agarrar a fio desencapado". A pergunta é será que os efeitos desse choque não podem ser alcançados com mais competência e menos sofrimento por meio de outros recursos?

O movimento Respeito em Cena lança nesta quinta-feira a segunda etapa de uma campanha batizada de "Abuso Não É Arte", com filme e vídeos que reúnem mais de 35 artistas de dez países da América Latina.

A etapa da vez mira misoginia, LGBTfobia e racismo, mas o planejamento da campanha para os próximos dias prevê uma discussão sobre assédio moral e constrangimento —de modo geral, praticados há muito tempo em nome de um suposto êxito no trabalho final do ator.

Fundada em março passado, quando promoveu sua primeira ação latino-americana contra a violência psicológica no meio artístico, a ONG Respeito em Cena é liderada pela documentarista, diretora artística e terapeuta holística Luciana Sérvulo da Cunha e já previa para agora o lançamento de uma sucessão de atos que conectam a efeméride com o universo artístico.

Os relatos envolvem profissionais do Brasil, como Mônica Torres, Vanessa Gerbelli, Juliana Alves e Angela Vieira, e também do México, da Nicarágua, da Costa Rica, da Venezuela, da Colômbia, do Equador, da Bolívia, do Chile, da Argentina e do Uruguai.

A bandeira chega na sequência —mas não em função— de uma carta-manifesto assinada em apoio ao desabafo da atriz Denise Weinberg contra Fátima Toledo, preparadora de elenco que trabalhou nos bastidores de alguns dos mais premiados filmes brasileiros, como "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite", além de "Marighella", atualmente em cartaz.

Weinberg revelou que sofreu violência psicológica e física durante o preparo de "Linha de Passe", filme de Walter Salles e Daniela Thomas de 2008, sendo humilhada por Toledo. A atriz se manifestou em reação aos elogios feitos a Toledo durante uma entrevista de Wagner Moura, diretor de "Marighella", ao programa Roda Viva, no início do mês.

Até esta quinta, a lista em apoio a Weinberg, cujo texto reivindicando o fim de maus-tratos não menciona a preparadora de elenco, tinha 221 nomes, incluindo atores, advogados, juristas, escritores, diretores, músicos, cenógrafos, figurinistas e jornalistas.

Ao site F5, deste jornal, na semana passada, Toledo prometeu tomar "medidas judiciais" e chamou de "corrente de cancelamento" a "cruzada vil de tentativa de destruição" de sua reputação, "com base em mentiras". Procurada novamente para comentar sobre seu trabalho e as ameaças judiciais, ela não quis se manifestar, dizendo que já falou sobre o assunto.

"Nossa discussão não passa por cancelamentos, o que é bem diferente de legítimos e necessários processos de conscientização sobre comportamentos desrespeitosos e abusivos", diz Sérvulo, endossada por atores como Paulo Betti, Cássio Scapin, Malu Mader, Suzana Pires, Daniel Dantas, Alessandra Negrini, Antônio Calloni, Dadá Coelho e Fabíula Nascimento.

"O trabalho da Respeito em Cena é baseado em campanhas educativas que fomentam debates e o diálogo", afirma a documentarista. "Quando uma pessoa rompe publicamente um longo silêncio sobre um abuso que ela sofreu e que lhe causou sequelas e um monte de danos, não seria bem mais fácil as pessoas envolvidas escutarem, chamarem para uma conversa, reconhecendo o erro ou apontando para uma reconciliação possível?", questiona a diretora.

Signatário da carta-manifesto, Paulo Betti reforça que não se trata de "um manifesto contra a Fátima, é a favor da Denise e de que os diretores e preparadores cuidem mais do nosso interesse". "Atores não querem ser adestrados como animais", resume.

Segundo Betti, os abusos cometidos em nome de aflorar fortes emoções em cena encontram raiz no método do russo de Constantin Stankislavski, morto em 1938, que há mais de um século dita o conceito de quem tem de ser provocado a buscar sensações viscerais na sua memória afetiva para representar um papel.

Diretor e ator russo Constantin Stanislávski como Don Juan em 1889 - Getty Images

Não que o russo tenha pregado explicitamente a tortura, física ou psicológica, para alcançar melhores resultados, mas é a partir daquele conceito de vivências realistas que podem ocorrer distorções e abusos.

"Por volta de 1918, o Stanislavski precisava de dinheiro para a companhia dele porque houve mudanças na Rússia, ele tinha um teatro subvencionado. Então, ele saiu para uma viagem e se apresentou nos Estados Unidos. Lá, um jovem chamado Lee Strasberg viu aquela forma de representar realista e ficou doido e criou 'O Método', que é o método baseado no Stanislavski, usado pelos atores Robert De Niro, Al Pacino, Marlon Brando, era o Actor’s Studio [conceituada escola de artes dramáticas de Nova York]."

"Não é à toa", lembra Betti, que "Marlon Brando, na famosa cena da manteiga com a Maria Schneider [em ‘O Último Tango em Paris’, de 1972] rompe esses limites da convenção". "A Maria Schneider foi fazer a cena sem saber qual era a cena", diz o ator. Na ocasião, a atriz tinha 19 anos e só soube na hora da filmagem que Brando simularia com ela uma relação de sexo anal, usando manteiga como lubrificante.

O caso foi admitido pelo próprio Bernardo Bertolucci, diretor do longa, décadas mais tarde, em 2013, em uma entrevista em vídeo. "Me sinto culpado, mas não me arrependo", disse o cineasta. "Não queria que Maria atuasse a humilhação, o ódio, eu queria que ela sentisse a humilhação e o ódio. Então ela me odiou pelo resto da vida", reconheceu.

Betti lembra ainda o momento em que o protagonista chora em "Ladrões de Bicicleta", de 1948. "Foi abusivo. O Vittorio de Sica confessa isso de uma forma até orgulhosa no filme ‘Nós que Nos Amávamos Tanto’, de Ettore Scola, de 1974. Ele diz que conseguiu fazer o menino chorar ao dizer a ele que falaria ao seu pai que ele era um ladrãozinho. Isso está no filme como um documento. É muito frágil mexer com as emoções das pessoas."

Desde que cursou a EAD —a Escola de Artes Dramáticas— da Universidade de São Paulo, em 1972, Betti conta que sempre ficou "muito sensível a métodos de interpretação que, na ânsia de obter resultados realistas, provocavam ou tentavam provocar desestabilização emocional nos atores e atrizes".

"Eu fugia desses métodos como o diabo da cruz. Por causa de problemas psiquiátricos de saúde com meu pai, eu tinha medo de que acontecesse algo errado com meu psicológico", lembra. "Escolhi [Bertolt] Brecht em vez das leituras equivocadas de Stanislavski e as memórias das emoções. Sempre construí meus personagens de fora para dentro, da escola Meierhold. Nossa arte é interpretar. Os diretores devem aprender a decupar. Para isso existe a montagem, e ninguém precisa apanhar para alcançar resultados."

Ator e diretor de teatro, Cássio Scapin considera ultrapassada a técnica de tentar desestabilizar o ator para obter bons efeitos em cena e lembra que Antunes Filho o constrangeu, no início da carreira, ao o aconselhar a fazer uma cirurgia plástica para reduzir seu lábio inferior, que chamou de "beiço", sob a alegação de que aquilo atrapalhava sua dicção.

"Acho que fiquei duas semanas lá e fui embora. Ele me chamou no meio da roda e disse que eu devia fazer uma cirurgia plástica no lábio inferior e me puxava pelo lábio inferior e dizia 'o seu beiço é muito grande’ e perguntava para as pessoas ‘você não acha que ele deve fazer uma cirurgia?’."

"Eu sou muito bem humorado e também era muito metido. Esse bullying não me pegou. Eu falei ‘eu não vou fazer porque eu gosto do meu beiço, ele tem serventia para muitas coisas’. E disse que eu não poderia fazer a oficina dele sem ganhar nada porque tinha aluguel para pagar. Eu trabalhava como garçom. Não fiquei lá, não me arrependo e não fez diferença na minha trajetória", completa.

Segundo Scapin, esse é um "método de uma geração e de um tipo de pensamento que está em desuso e já se mostrou ineficaz e ultrapassado". "Isso foi caviar perto do que as pessoas passavam, sei de pessoas que ficaram muito abaladas, acho um desserviço. Temos o caminho da inteligência que serve ao ator."

"Quem não tem uma casca grossa para aguentar essas pessoas facilmente se destrói, isso é insalubre. Tem caminhos excelentes para a criação artística que não devem passar por qualquer tipo de humilhação ou depreciação moral, física ou qualquer outro tipo."

Scapin enfatiza ainda que o método tampouco garante bom resultado do trabalho artístico, mas não é à toa que se faz mais presente em treinamento de não atores preparados para entrarem em cena em curto prazo, como acontece em vários filmes e séries que optam por não profissionais para valorizar a experiência de vida da pessoa que entra em cena, em detrimento da formação artística.

"Pode servir para um imediatismo, mas não serve para a formação do ser humano, e a gente trabalha com arte. É principalmente isso que a gente busca, a elevação do caráter humano, e não a degeneração dele, dos valores humanos, do respeito, da integridade, do lugar."

A premissa de que o constrangimento e a degeneração buscada por esse tipo de método está em desuso encontra justificativa no mundo contemporâneo. "O artista está ligado às questões da movimentação do mundo, e a gente está num momento em que a humanidade tenta evitar ou minimizar os danos causados pelo excesso do pequeno ou do grande poder. A gente não pode reproduzir os sistemas de autoritarismo ou de violência autoritária, desrespeito moral e ético, dentro de uma questão em que a gente preza a valorização do humano. É o caso típico em que os fins não justificam os meios", conclui Scapin.

A documentarista Luciana Sérvulo da Cunha, que foi assistente de direção de Dario Fo, na Itália, concorda. "Fico pensando nas relações de poder da nossa sociedade patriarcal, machista e racista, onde as relações são perversas. Você transpõe isso para um set de filmagem onde as relações são marcadas por fortes hierarquias sem o respeito ao outro e, nessa cadeia de produção, os mais vulneráveis são os atores e atrizes, porque eles pisam ali dispostos a dizer ‘sim’ e precisam atingir um grau de doação para esse trabalho."

Assim como Scapin, o ator Ary França também tem lembranças negativas da escola de Antunes Filho, com a diferença de que ele conviveu com o diretor por dois anos e meio. Eram notórias as recomendações do diretor para que seus alunos não conversassem ou tivessem qualquer contato fora das aulas. E é corrente, entre seus discípulos, o quanto eles desobedeciam a essa norma na vida real.

"Eu fui pego de calças curtas, não vivia em uma redoma de vidro do Leblon, eu mal sabia como se comportava esse mundo. E, num olhar retrospectivo, fui vendo vários casos de abuso moral. Custa a cair a ficha", diz França.

"E demora por duas razões. No momento, você está chocado demais, traumatizado demais, a ponto de achar que aquilo é normal. E, porque quando se ganha uma certa notoriedade, é muito mais fácil falar. Eu não digo isso para me vingar, falo pela molecada, que não pode normatizar isso como a gente normatizava."

França conta que foi à procura de Antunes Filho porque o diretor tinha feito uma montagem de "Macunaíma" e estava em busca de atores. "Sofri bullying, ofensas horrorosas, ofensas pessoais, ofensas coletivas. Uma vez ele me puxou pelo pau para dizer que eu não sabia andar em cena. E tinha todo tipo de gritaria e assédio moral, sem falar sobre o que a gente ouvia dizer."

O ator não nega a consagração atribuída a Antunes, endeusado como um dos maiores diretores de teatro do país. "Ele sempre foi muito competente esteticamente. Em um país como o nosso, de aparência, é o que parece, não o que é, e ele parecia uma coisa interessante. Já eticamente a gente sempre releva. É cultural essa conivência, como se os fins justificassem os meios, é a nossa alma de capitão do mato."

"Quando saí de lá", conclui França, "eu vi que o mundo era outro". "Aprendi muito, claro, porque o Lúcifer pode ser Lúcifer, mas sabe bastante sobre o ofício. Uma coisa é ética, outra é estética."

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