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Como um cupido escondido foi descoberto numa tela de Vermeer do século 17

Quadro é o foco de uma exposição aberta por Angela Merkel e pelo primeiro-ministro holandês Mark Rutte, na Alemanha

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Catherine Hickley
Dresden | The New York Times

Depois de quase três séculos escondido por trás de uma camada de tinta, um cupido nu emergiu em uma das obras de arte mais amadas do planeta, alterando drasticamente o pano de fundo de uma discreta cena caseira.

O deus roliço e de cachinhos dourados em "Garota Lendo uma Carta com a Janela Aberta", de Johannes Vermeer, foi revelado em um projeto de restauração que Stephan Koja, diretor da Gemäldegalerie Alte Meister, ou galeria de pintura dos velhos mestres, em Dresden, na Alemanha, descreveu como "uma história de detetive e uma aventura".

O quadro é o foco de uma exposição aberta na galeria pela primeira-ministra alemã Angela Merkel e pelo primeiro-ministro holandês Mark Rutte, e que fica em cartaz até o dia 2 de janeiro. É um dos apenas 35 quadros atribuídos definitivamente a Vermeer. A mostra em Dresden, chamada "Johannes Vermeer: Em Reflexo", mostra dez dessas peças, em companhia de quadros de contemporâneos com quem Vermeer aprendeu, como Pieter de Hooch e Gerard ter Borch.

Dede que um raio-x de "Garota Lendo uma Carta com a Janela Aberta" foi feito, mais de 40 anos atrás, estudiosos estavam cientes do cupido, que parece contemplar a cena de um quadro dentro do quadro. Aquela porção da imagem, no canto superior direito da tela, estava escondida sob um retângulo de tinta, por trás da cabeça da jovem que é a figura principal do quadro. Mas a suposição sempre tinha sido a de que Vermeer mesmo tinha escolhido apagar o deus do amor.

Por isso, quando curadores da Coleção Estatal de Arte de Dresden, que supervisiona a Gemäldegalerie Alte Meister, decidiram restaurar o quadro, em 2017, não havia planos de expor a figura mitológica. Mas o retângulo respondeu ao solvente usado pelos restauradores para remover o verniz de maneira diferente ao restante da tinta, disse Koja.

Isso indicava que a tinta contivesse ingredientes diferentes dos usadas por Vermeer, e tornava mais provável que tivesse sido aplicada por alguma outra pessoa. A coloração mais escura também era uma indicação de que um artista posterior tinha tentado equiparar a cor da modificação à do restante da tela, escurecida pelo passar dos anos.

O museu formou uma comissão consultiva de especialistas em Vermeer e restauradores. O grupo concordou que era justificável remover amostras microscópicas de tinta e testar cada uma delas —uma decisão que não deve ser tomada levianamente, disse Koja. Análises de pequenos fragmentos ofereceram provas conclusivas de que o cupido tinha sido recoberto de tinta anos, ou talvez décadas, depois que Vermeer concluiu o quadro, na década de 1650.

"Encontramos uma camada de verniz com sujeira no topo", que deve ter se acumulado posteriormente, acrescentou Koja. "Estava claro que a camada superior de tinta não tinha sido aplicada por Vermeer. Era uma distorção acrescentada por mão desconhecida e contrária à intenção do artista."

Depois que o comitê de especialistas aprovou, os restauradores expuseram uma área da tela sob o retângulo pintado, com cerca de 1,2 centímetro de largura. Não só as pinceladas do cupido eram claramente semelhantes às de Vermeer como a área estava em excelente condição, disse Koja.

"Os resultados dos testes foram tão esmagadores que aquilo que precisávamos fazer ficou bem claro", ele disse. O comitê concordou em que Christoph Schölzel, restaurador de quadros do museu de Dresden, deveria expor o cupido em sua totalidade. Schölzel demorou um ano e meio para fazer isso, trabalhando centímetro por centímetro com um bisturi e um microscópio.

Koja disse que o quadro havia ganhado alguma coisa não só em termos de composição e balanço de cores, mas também com relação ao conteúdo. Embora o rubor no rosto da garota já deixasse claro que ela estava lendo uma carta de amor, antes da alteração, a presença do deus do desejo na parede acrescenta uma mensagem sobre o tipo de amor que Vermeer pode ter indicado. O cupido dele é mostrado pisoteando uma máscara, um símbolo de dissimulação, a fim de demonstrar que o amor verdadeiro supera a desonestidade e o logro.

O quadro dentro do quadro também conecta a obra aos interiores posteriores de Vermeer, muitos dos quais mostram figuras na janela, banhadas em luz. As imagens muitas vezes capturam um momento em que o tema da pintura está perdido em pensamento, sozinho, às vezes em meio a uma tarefa caseira. Quadros ou mapas nas paredes por trás do personagem central ajudam o observador a compreender a vida interior do personagem.

O mesmo cupido aparece em três outros quadros de Vermeer, entre os quais "Dama de Pé ao Virginal", que faz parte do acervo da National Gallery de Londres e está na mostra de Dresden. Mas, nesse quadro, o cupido não pisoteia uma máscara —em lugar disso, segura nas mãos o que parece ser uma carta. Em "Garota Interrompida em um Exercício Musical", que a Coleção Frick, de Nova York, enviou à Europa para a mostra de Dresden, um cupido pende sobre o casal em primeiro plano, o que não deixa dúvidas sobre o que ocupa os pensamentos deles.

É provável que o cupido se baseie em uma pintura que era propriedade de Vermeer. Um inventário de suas propriedades, que incluíam cerca de 50 quadros, menciona um cupido. Embora esse quadro não tenha sido localizado ou identificado, os curadores dizem acreditar que provavelmente fosse uma obra contemporânea do artista, pelo pintor holandês Caesar van Everdingen.

Restam alguns mistérios. Não se sabe exatamente quem encobriu o cupido, nem por quê, ou quando, embora saibamos que outros quadros de Vermeer foram alterados por gerações posteriores a fim de adequar as composições ao gosto de outras épocas.

A descoberta também resultou em especulações sobre outra de suas obras, "Mulher com Gargantilha de Pérolas", que faz parte da coleção do Museu Estatal de Berlim.

A mulher no quadro em questão, vestida de amarelo com detalhes em arminho, está diante de um espelho, e seus dedos tocam as fitas nos dois extremos da gargantilha, em um momento de silenciosa introspecção. Por trás há uma parede branca sóbria. Análises mostram que um quadro que existia na parede foi encoberto —mas quem o fez?

Uta Neidhardt, restauradora chefe de arte holandesa na Coleção Estatal de Dresden, disse que a alteração pode ter sido realizada por Vermeer mesmo, mas acrescentou que "nossos colegas em Berlim terão de encarar muitas questões".

Koja disse que a equipe de Dresden estava disposta a ajudar caso os curadores de Berlim decidam investigar com mais cuidado. Mas Katja Kleinert, a funcionária responsável pelas pinturas flamengas e holandesas do século 17 nos Museus Estatais de Berlim, disse que uma análise conduzida menos de duas décadas atrás mostrava que o mapa —diferentemente do cupido de Dresden— jamais tinha sido concluído. "Era só um esboço", ela disse. "Estamos bastante seguros de que foi Vermeer mesmo que recobriu aquela parede."

Johannes Vermeer: Em Reflexão

Tradução de Paulo Migliacci

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