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'Confinada', HQ que surgiu nas redes, escancara desigualdade na pandemia

Quadrinhos de Leandro Assis e Triscila Oliveira, agora em livro, mostram conflitos de classe e de cor em meio à Covid

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Washington

As palavras-chave na ficha técnica da história em quadrinhos "Confinada" são excepcionalmente precisas. Entre elas, "pandemia", "racismo" e "privilégio branco", que são seus fios condutores.

Um dos lançamentos mais relevantes deste ano no mercado das HQs nacionais, "Confinada" é quase uma retrospectiva da dor de viver no Brasil em 2020 e 2021—em especial, para as populações marginalizadas. O livro saiu no início de novembro pela editora Todavia.

"Confinada" chegou às livrarias já com estrondo, aliás. A pré-venda no site Catarse vendeu quase 8.000 exemplares. Em contrapartida ao apoio recebido online, a editora doou exemplares para bibliotecas comunitárias.

O gibi conta a história de duas mulheres confinadas uma com a outra na pandemia. A primeira é a influencer Fran, da elite carioca. A segunda é a doméstica Ju, confinada no quartinho de empregada do apartamento de Fran, a patroa. A relação delas é marcada por conflitos de classe e de cor. Fica evidente, também, o quanto a pandemia afeta os brasileiros de maneiras diferentes. Nem todos podem ficar em casa, por exemplo, e nem todos têm acesso aos mesmos cuidados médicos.

Leandro Assis, que desenha a HQ e assina o roteiro com Triscila Oliveira —ambos chargistas da Folha—, já vinha lidando com a desigualdade social em "Os Santos". A série, publicada na rede Instagram, conta a história de uma família de elite carioca. "Eu queria desabafar, falar mal mesmo", diz. "Queria retratar um grupo de pessoas muito próximas a mim, dessas que reclamavam que o aeroporto estava cheio de pobre."

Em "Os Santos", dessa maneira, Assis passou a fazer esse retrato frequente. "Como um episódio do Globo Repórter", ele brinca, destrinchando um grupo social que ele queria entender melhor e criticar. Era uma vontade, diz, tornada ainda mais urgente depois da eleição de Jair Bolsonaro.

A série teve bastante sucesso nas redes e Assis começou a receber mensagens de leitores que se identificavam com os personagens, em especial, com as empregadas. Uma delas foi Triscila Oliveira, ativista antirracista que já trabalhou como doméstica. Os dois começaram a conversar e decidiram trabalhar juntos na HQ "Os Santos". Dessa parceria saiu também "Confinada", projeto que tem esse mesmo objetivo de fazer uma crítica social, só que no contexto específico da pandemia.

"A HQ é um retrato sem filtro, sem maquiagem, do que é a desigualdade no Brasil neste período, entre brancos e pretos, ricos e pobres", Oliveira diz. "A função da arte é essa. Trazer uma memória afetiva, conscientizar, remexer você", afirma. Uma maneira de constranger o público.

Oliveira ainda se lembra de como teve contato com o trabalho de Assis pela primeira vez. Leu uma tirinha dele sobre uma empregada acordando de madrugada para trabalhar. Quando chega no serviço, a mulher ouve a patroa reclamar que a manteiga está muito dura —e dizer que a doméstica tinha que ter chegado mais cedo para tirá-la da geladeira. "Eu estava vendo a minha vida ali", Oliveira conta.

A parceria de Assis e Oliveira é, de certa maneira, um encontro entre dois mundos distintos, de diferentes racializações. "Eu vinha fazendo meu trabalho com base na experiência que eu tinha tido no meu apartamento, no de amigos, de parentes. Conseguia retratar a dinâmica patrão-empregado, mas não a vida das empregadas", Assis diz. Oliveira completa: "muito do que eu conto vem da minha própria experiência, e o Leandro não conseguiria compreender essas nuances com os privilégios que ele tem".

A reunião de roteiro acontece via WhatsApp, a distância. São longas conversas até eles chegarem a um acordo sobre o que vão produzir. As tirinhas aparecem primeiro no Instagram, em nove quadros. O livro que sai pela Todavia é uma compilação da série, incluindo quatro histórias inéditas.

Assis tem uma trajetória inusitada nos quadrinhos. Roteirista de cinema e televisão, tentava há tempos desenhar seu próprio gibi. No passado, comprou nanquim e pena, mas não conseguiu se entender. "Era um desastre. Eu me embananava, ficava sujo", conta. Foi só mais recentemente que ele começou a explorar o desenho em tablets, aproveitando o suporte digital para rabiscar.

Assis desenha "Confinada" com toques de álbum de retrato antigo, de pintura de aquarela acabada com nanquim. O gibi também é marcado pelas cores fortes, exageradas, por vezes simulando filtros de Instagram —com uma estética que condiz com a linguagem da patroa, Fran, e sua visão de mundo superficial.

"É um formato lúdico, mas estamos falando de um assunto sério", Oliveira diz. "Foi isso que mais impactou o público. Você está lendo uma HQ e meio que dá um ‘bug’ na sua mente. Muita gente tem reconhecido a história das empregadas e das ‘Frans’ que elas conhecem na vida delas."

"Não vou dizer ‘ai, meu Deus, vai mudar a vida das pessoas’", Oliveira afirma. "Mas é uma ferramenta que pode gerar conscientização. Os leitores estão vendo que muita coisa está errada."

Confinada

  • Preço R$ 74,90 (128 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autor Leandro Assis e Triscila Oliveira
  • Editora Todavia
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