De Adele ao uivo de James Blunt, entenda o que é o novo plágio na era do sample

Imbróglio de britânicos com Chico Buarque e forrozeiros mostra que criar música a partir de outras nunca foi tão fácil e perigoso

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Ilustração mostra James Blunt com papagaios ao seu redor. Há um ovo na sua frente que cai num ninho cheio de ovos. O ninho é uma ilustração de uma orelha e do aparelho auditivo antigos, e cai entre Ávine e Matheus Fernandes. Deles cai um ovo quebrado de onde sai um cachorro caramelo.

Colagem Ávine Vinny e Matheus Fernandes, as vozes por trás de 'Coração Cachorro', a James Blunt, que garantiu 20% dos lucros dos artistas brasileiros com o forró Carolina Daffara/Folhapress

São Paulo e Ribeirão Preto

"Pelo Telefone", considerado o primeiro samba da história, gravado em 1916, teve sua autoria registrada pelo jornalista Mauro de Almeida e pelo músico Donga, embora, diz a lenda, tenha sido escrito em improvisos nas reuniões históricas que ocorriam na casa da Tia Ciata, uma cozinheira e mãe de santo tida como uma das figuras mais influentes para o surgimento do samba. Foi um marco para a autoria musical. A composição popular, afinal, deixava de ser coletiva e anônima para ter um proprietário ao ser gravada.

Desde então, a indústria fonográfica se estabeleceu e fez com que a música, antes vista como algo intangível e performático, se transformasse num produto vendável. Hoje, os direitos autorais são vendidos como commodities no mercado multimilionário de ações, e quem compra uma fatia de uma composição lucra toda vez que ela é usada numa produção audiovisual ou reproduzida em plataformas de streaming, emissoras de rádio e TV, eventos e shows.

Por outro lado, nunca foi tão comum fazer música a partir de outras músicas. Nem tão perigoso, já que também nunca se discutiu tanto quem é o verdadeiro autor de uma canção. Pelo "supremo tribunal virtual", são levadas ao banco dos réus tanto estrelas do pop internacional, como Adele, quanto figuras menos conhecidas, como Ávine Vinny e Matheus Fernandes.

Embora os juízes virtuais distribuam sentenças a torto e a direito —o que importa, afinal, é apontar quem está se aproveitando de quem—, o debate sobre autoria na música popular não é tão simples. É, na verdade, antigo, carregado de subjetividade e se torna ainda mais complexo ao passo em que nunca esteve tão em alta a produção musical a partir de samples —ou seja, a reprodução do trecho de uma música já existente noutra, seja no puro Ctrl+C Ctrl+V, seja a partir de novos arranjos.

Os casos mais recentes de repercussão são os de Vinny e Fernandes, que reproduziram em "Coração Cachorro" o uivo que James Blunt dá em "Same Mistake", e o de Adele, que escreveu para "Million Years Ago" uma melodia que lembra a de "Mulheres", composta por Toninho Geraes para ser eternizada na voz de Martinho da Vila.

Mas eles não são os únicos. Prova disso é que, entre as dez canções mais tocadas no Brasil nesta semana no Spotify, o serviço de streaming de música mais popular do país, "Coração Cachorro" não é a única produzida a partir de outro sucesso. Há ainda "Ela Me Falou que Quer Rave", de MC Levin, que reproduz não só a melodia mas todo o refrão de "Pumped Up Kicks", do Foster the People.

"Ela me falou que quer rave, bebida/ quer bala pra ficar na brisa, na brisa", canta o MC, sua voz modificada por sintetizadores eletrônicos, reclamando que, "ao encostar no camarote", "só tem combo de Askov", enquanto, no backing vocal, surge Mark Derek Foster, o vocalista do grupo norte-americano, pedindo que "todas as crianças com tênis modernos/ é melhor correrem mais rápido que minha bala".

"Ela Me Falou que Quer Rave" pode não ter chegado aos ouvidos do Foster the People, que até hoje nada disse sobre o sample, mas "Coração Cachorro" chegou aos de Blunt. O cantor publicou no TikTok um vídeo em que canta e dança o forró, elogiando o trabalho de Vinny e Fernandes. Na legenda, por outro lado, avisava que mandaria a eles seus dados bancários.

E assim o fez. Num acordo amigável, fechado em menos de um mês sem chegar aos tribunais, o britânico garantiu 20% dos lucros dos compositores brasileiros, além de ter sido creditado como um dos autores do hit.

"Ninguém tinha dúvida de que eles tinham reproduzido parte da minha música. A negociação foi simples, porque a gente nunca discordou. Eu amaria subir ao palco com eles. Seria uma honra. Eles fizeram o grande favor de levar outras pessoas a relembrarem ou conhecerem minha música", afirmou Blunt, por videoconferência, enquanto promovia o disco que lançou na semana passada, "Stars Beneath My Feet", que reúne seus maiores hits com dois novos singles.

Já com Adele, a história é outra. Ouvidos e opiniões à parte, o advogado de Toninho Geraes, Fredímio Trotta, sustenta que, em termos técnicos, 87% da produção da britânica é idêntica ou muito semelhante à do brasileiro, que deseja receber parte do que a cantora lucrou com a música e ser creditado como um de seus autores.

O caso gerou tanta polêmica que, um mês e meio depois, Adele foi acusada de plágio novamente. Desta vez, a vítima seria Chico Buarque. Nas redes sociais, fãs diziam que havia muitas semelhanças entre "Eu Te Amo", que Buarque compôs com Tom Jobim, e "To Be Loved", lançada pela britânica há uma semana em "30", seu aguardado último disco.

Mas desta vez mal deu tempo de a audiência do "supremo tribunal virtual" começar. Apesar de o caso ter sido noticiado por dezenas de jornais, a equipe de Chico informou que acionou o maestro Luiz Cláudio Ramos para analisar o caso e chegou à conclusão de que não há semelhança entre as canções.

É uma análise mais complexa do que se imagina, diz o advogado Luiz Guilherme Valente, especialista em propriedade intelectual e membro da Comissão de Artes da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo. Há muitas maneiras de tentar convencer um juiz sobre quem copiou quem.

A primeira delas é por meio de laudos feitos por peritos musicais para apontar quais e quantas são as semelhanças entre um produto e outro. O advogado de Geraes, por exemplo, contratou três peritos para analisarem "Mulheres" e "Million Years Ago". Quando o caso chegar aos tribunais, nos próximos meses, outros profissionais ainda podem ser indicados para fazer análises independentes.

O problema é que a lei de direitos autorais de muitos países, a do Brasil entre elas, não determina, por exemplo, quantas notas uma melodia precisa compartilhar com a outra para a configuração de plágio. E se elas forem todas iguais, mas estiverem, quem sabe, arranjadas em tons, escalas, ritmos e durações diferentes?

Ilustração mostra James Blunt com papagaios ao seu redor. Há um ovo na sua frente que cai num ninho cheio de ovos. O ninho é uma ilustração de uma orelha e do aparelho auditivo antigos, e cai entre Ávine e Matheus Fernandes. Deles cai um ovo quebrado de onde sai um cachorro caramelo.
Sem precisar recorrer aos tribunais, James Blunt garantiu 20% dos direitos autorais de "Coração Cachorro", cantada pela dupla Ávine e Matheus Fernandes - Carolina Daffara/Folhapress

É por esse, entre outros motivos, que o advogado de Geraes trabalha ainda com argumentos complementares. Sustenta que Adele já teve contato próximo com uma professora de educação física brasileira e que seu produtor, Greg Kurstin, estudou MPB, motivo pelo qual certamente conheceria "Mulheres".

Só o tempo dirá quem tem culpa no cartório, mas fato é que casos como os de Adele reacendem discussões antigas sobre estrangeiros que plagiam brasileiros. No fim da década de 1970, a editora de Jorge Ben Jor processou a de Rod Stewart, acusando o britânico de ter plagiado "Taj Mahal" ao escrever "Do You Think I Am Sexy".

Embora Ben Jor tenha saído vitorioso dos tribunais, é impossível descobrir se Stewart realmente havia escutado "Taj Mahal" antes de produzir "Do You Think I Am Sexy". É comum, afinal, que fraseados musicais dos mais diversos permaneçam no subconsciente de seus ouvintes —músicos e compositores entre eles— sem que se saiba sua origem exata. Isso sem contar a quantidade de músicas pop que são produzidas a partir dos mesmos acordes —ou seja, do mesmo conjunto de notas musicais.

O caso de Ben Jor e Stewart não é único. Em 2018, Pharrell Williams e Robin Thicke foram condenados a pagar quase US$ 5 milhões à família de Marvin Gaye, que acusou a dupla de ter plagiado "Got to Give It Up", de 1977, ao produzir "Blurred Lines", em 2013.

Amplamente noticiado mundo afora, o caso deu início a uma discussão importante, a de se o uso de um mesmo groove —ou seja, de um ritmo, e não de uma sequência melódica— pode configurar plágio.

É um debate que volta e meia ressurge, sempre carregado de subjetividade. Num vídeo recente, Ed Motta disse que teria vergonha de ter um filho beatmaker, como são conhecidos produtores musicais que fazem músicas a partir de samples.

A declaração não foi bem recebida. Foi respondida à altura pelo produtor Felipe Vassão, que apresentou, noutro vídeo, trechos de canções de Motta que lembram sucessos de artistas estrangeiros. Entre outros trabalhos, Vassão assina "Triunfo", o primeiro hit de Emicida, que sampleia, como se diz na indústria, a trilha sonora de um bangue-bangue.

"Eu jurava que ‘Manoel’, o primeiro sucesso dele [Motta], tinha sido feito em cima de um sample de Jimmy ‘Bo’ Horne", disse Vassão, lembrando um dos cantores de maior sucesso da era disco nos Estados Unidos. "Aí é que caiu a ficha. O Ed Motta não se ligou que a única diferença entre ele e um beatmaker é que o beatmaker ‘sampleia’ e dá crédito às pessoas que ele ‘sampleou’, geralmente. O Ed Motta não. Ele finge que tudo que criou saiu daquela cabeça brilhante dele."

Samplear, afinal, nunca foi tão fácil. Com uma ideia criativa na cabeça e um smartphone dos mais baratos nas mãos, dá para criar um hit. É que, se antes era preciso garimpar ou importar discos raros, hoje a internet permite acesso instantâneo e de alta qualidade a um vasto catálogo de músicas de diferentes épocas e origens.

E os samples não vêm mais apenas de refrões de antigos sucessos. Podem surgir a partir de trechos de uma conversa exibida num programa de auditório, da apresentação de uma notícia num telejornal ou, por que não, de um meme viral.

Apesar do novo alento, a prática é antiga. Na década de 1970, DJs de hip-hop já criavam a partir da repetição de um solo de bateria de seis segundos que Gregory C. Coleman havia escrito para "Amen, Brother", uma música gospel dos The Winstons que, desde1969, quando foi lançada, já foi reutilizada noutras 5.459 canções, segundo o site WhoSampled, que cataloga o uso de samples. Na mesma época, produtores jamaicanos também faziam novas músicas através da manipulação de gravações já existentes de reggae e ska.

Essas experiências abriram caminho para a música eletrônica, que se espalhou a partir da década de 1980 e deu origem às raves britânicas e à batida Miami bass, que mais tarde influenciaria o funk brasileiro.

O Brasil é um terreno fértil para a criação a partir de gravações alheias, dado seu histórico imbatível de versões em português para sucessos estrangeiros —entre eles, "Já Me Acostumei", gravada em 2008 pelo grupo Calcinha Preta a partir da melodia na íntegra da mesma "Same Mistake" sampleada em "Coração Cachorro".

No YouTube, canais que publicam versões de hits em reggae ou em forró colecionam milhões de visualizações. Embalada por acordeão, triângulo e zabumba, o forró de "Set Fire to the Rain", um dos maiores sucessos de Adele, soma 12,3 milhões de visualizações num canal batizado Vesgo.

Ciente da ilegalidade, o canal pede na descrição dos vídeos que, se algum artista, produtor ou gravadora quiser que o conteúdo seja retirado do ar, basta escrever um pedido por email que ele será prontamente atendido.

No Brazilian Remix TV, outro canal famoso do gênero, há uma de "Easy on Me", o principal single do novo disco de Adele. É a "versão João Gomes", diz o título, citando um dos cantores que comanda a eletrização do forró. Mesmo aparecendo numa montagem lado a lado com Adele, ambos vestidos com um tom de rosa parecido, Gomes não tem qualquer relação com o vídeo.

Embora seja irrefreável, a indústria das versões brasileiras se submeteu a certas regras ao migrar para a internet. É que, se hoje produtores como os desses canais raramente lucram com as versões brasileiras, visto que o YouTube não permite a exibição de anúncios nos vídeos ou reverte a receita para os verdadeiros autores das músicas, antes grupos como Calcinha Preta faziam shows e vendiam discos à vontade.

Outro exemplo é "A Recaída", de Zé Vaqueiro, outro grande nome do forró eletrônico. Apesar de ter sido lançada por uma grande gravadora, com o aparato jurídico necessário para evitar processos, a música trazia um trecho do refrão de "What Is Love", um dos principais clássicos da eurodance. Pouco depois, entretanto, ela reapareceu no streaming com um solo de saxofone onde antes havia o sample.

Foi o mesmo caso de "Depressão", um funk gravado por Rennan da Penha com MC Livinho que, embora tenha sido lançado com o trecho de uma canção da banda norte-americana Cake, ressurgiu mais tarde no streaming sem o uso do sample.

No entanto, fora dos radares dos algoritmos responsáveis por barrar o uso de trabalhos alheios sem autorização, as versões com e sem sample convivem harmoniosamente. Quem rastreia, afinal, os arquivos de DJs e os pen drives que abastecem os paredões que levam centenas de caixas de som amontoadas para os bailes e festas de rua?

Há DJs e MCs que publicam seus trabalhos nos streamings como podcasts, um formato em que a fiscalização não é tão forte. Para os mais insistentes, há ainda outras maneiras de samplear sem ser punido pelos algoritmos.

Um produtor que acumula algumas centenas de milhares de visualizações no streaming com uma canção que reproduz uma melodia de Charlie Brown Jr. diz sob anonimato à reportagem que há muitas formas de "maquiar" um sample e confundir a inteligência artificial. É possível, por exemplo, tornar a melodia ou os vocais reutilizados mais graves ou mais agudos, adicionar ou retirar ecos e até alterar a quantidade de batidas por minuto, o BPM.

Para se certificar de que as adulterações funcionaram, basta apertar o play e abrir um aplicativo como o Shazam para verificar se ainda é possível reconhecer o material original. Muitas vezes, embora os ouvidos humanos sejam capazes de tal tarefa, os dos robôs das plataformas de streaming se perdem.

Esse produtor, que tira seu sustento a partir do que lucra com produções sampleadas e com o trabalho como DJ em festas no Rio de Janeiro, onde vive, nunca recebeu advertência de nenhum streaming nem de artistas ou gravadoras.

Não ainda, ele diz, com receio de que um dia possa ser levado à Justiça, adiantando que está começando a investir cada vez mais em samples que, de tão adulterados, nem um ouvido humano seja capaz de reconhecer.

Se os truques vão dar certo ou não, só o tempo pode dizer. Não parece, entretanto, tarefa das mais fáceis, à luz das polêmicas e das batalhas judiciais que têm se formado em torno de acusações de plágio ou do uso não autorizado de samples. Talvez como na natureza aos olhos de Lavoisier, na música nada se cria, tudo se transforma —ou tudo se copia.

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