Entenda como a pandemia detonou onda de pinturas de casas e interiores domésticos

De casarões escravocratas da era colonial a mansões modernistas, obras em alta denunciam nova tendência

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'Sala Florida', óleo de Ana Elisa Egreja, em exposição na Galeria Leme, em São Paulo Ana Elisa Egreja/Divulgação

Ribeirão Preto

Rótulos de produtos de higiene e beleza que consumimos todos os dias, pacotes de bolachas que comíamos à beça quando crianças, a pia que deixamos encher de louça e até os azulejos portugueses de casarões que já visitamos ou vimos em novelas de época.

O interior doméstico e tudo de mais banal que dentro dele possa haver está ganhando um novo alento em pinturas espalhadas por exposições, feiras e galerias de arte brasileiras. Algumas, ainda, saltam do cubo branco e viralizam nas redes sociais, compartilhadas por um público que talvez nunca tenha estado numa Bienal de São Paulo.

São cenários ora retratados quase exatamente como são, como nos óleos de Fábio Menino e Rodrigo Honda, ora subvertidos em ruínas povoadas por figuras de poder ou invadidos por animais, como nas obras de André Griffo e Ana Elisa Egreja.

Representativa dessa safra é "Instruções para Administração das Fazendas", série que Griffo começou a pintar há três anos e retomou nos últimos meses. O terceiro quadro, o mais recente deles, mostra o salão de uma casa-grande.

À primeira vista, parece um cômodo qualquer, com paredes brancas em ruínas, adornadas por azulejos e arcos de volta perfeita em tom azul e coroadas por uma sanca.

Mas, se aguçarmos a visão e dermos um zoom —ver ao vivo não é mais possível, porque o quadro já foi vendido—, a senzala também está ali, no mármore da mesa de centro sobre a qual os escravos —ou melhor, miniaturas deles— trabalham enquanto o barão e a baronesa assistem ao fundo, de dentro de retratos presos à parede, com as mãos de fora da moldura, no controle da labuta.

O quadro sintetiza boa parte da obra que Griffo, arquiteto por formação, vem criando desde 2009. Por meio de ambientes pintados a óleo, acrílico, spray e carvão, ele questiona o Brasil escravocrata que, centenas de anos depois, ainda reverbera em boa parte de seu povo, submetido diariamente às mazelas da desigualdade.

Em seu portfólio —representado pela galeria Nara Roesler, em São Paulo, e pela Athenas, no Rio de Janeiro—, há ainda cenas contemporâneas, caso de "O Golpe, a Prisão e Outras Manobras Incompatíveis com a Democracia".

'O Golpe, a Prisão e Outras Manobras Incompatíveis com a Democracia', óleo sobre lona, por André Griffo
'O Golpe, a Prisão e Outras Manobras Incompatíveis com a Democracia', óleo sobre lona, por André Griffo - André Griffo/Divulgação

Na cozinha de uma casa bem mais simples do que a dos casarões coloniais, onde a luz vem de uma janela enferrujada e de um bocal de plástico improvisado com fios soltos, uma pequena televisão presa aos azulejos transmite o discurso que o ex-presidente Lula fez em 2018, antes de ser preso, sobre o palanque montado em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, em São Bernardo do Campo.

"Uso a arquitetura como veículo para críticas. Numa tela pequena de computador e celular, mesmo dando zoom, essas informações podem passar despercebidas", diz Griffo, que prepara uma exposição individual para o ano que vem. "Através de fotos, minha pintura parece fotográfica, mas, quando você a vê pessoalmente, percebe que há trechos abstratos, com muita tinta e marca de pincel."

Quem também subverte a realidade é Ana Elisa Egreja, que despontou no cenário paulistano em 2008 com obras que justapõem o interior doméstico à natureza. À primeira vista, pode parecer hiper-realismo. Eis que somos surpreendidos por galinhas nos degraus da escada, polvos que tomam conta da banheira e flamingos que invadem a sala e se veem refletidos num pequeno lago onde deveria haver o chão.

Embora assuma uma presença mais discreta em seus trabalhos recentes, o estranhamento ainda ronda as cenas. Pode ser visto em dois óleos deste ano, caso de "Cinderela", nos besouros que invadem a sala de estar, num aceno às nuvens de gafanhotos que nos assustaram no ano passado, e em "Cozinha Pennacchi", no balcão ocupado tanto por frutas suculentas quanto por pássaros mortos de espécies que normalmente não servem de alimento para humanos.

São cenários que Egreja encena e fotografa para depois pintar, muitas vezes na casa desocupada de seus avós, ou que cria no computador a partir da colagem de rótulos, estampas e tapeçarias catalogados digitalmente ao longo das duas últimas décadas.

É uma referência, ela diz, vinda do realismo fantástico de Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e outros mestres da literatura. A inspiração também batiza sua exposição atual, "Fazer Realidade", em cartaz na galeria Leme, que a representa, em São Paulo.

"Realidade não se faz. Realidade é. Mas, de certa forma, eu estou fazendo. São todos ambientes que não existem, mas que, por serem pintados de forma realista, o espectador tende a achar que existem", diz. "Você olha e pensa 'que absurdo'. Mas também não é impossível."

Suas pinturas também são povoadas por elementos de períodos distintos, como afrescos renascentistas e pôsteres de astros do pop como Justin Bieber. A princípio seriam incongruentes juntos mas, sob as pinceladas de Egreja, passam a conviver em harmonia.

Produtos do cotidiano são também tematizados pela artista. É o caso das embalagens cor-de-rosa que tomam a borda de uma banheira retratada em "Pink Tax".

São, em suas palavras, produtos "mais caros do que os masculinos" —"a tal taxa rosa"—, que, "envoltos numa aura de sedução e romantismo subserviente", prometem o controle "da queda, do humor, de frizz, da barriga", além da "redução de pelos, de nervos, de poros, de idade".

'Pink Tax', óleo de Ana Elisa Egreja
'Pink Tax', óleo de Ana Elisa Egreja - Ana Elisa Egreja/Divulgação

Esses mesmos elementos surgem em primeiro plano nas obras de Fábio Menino e Rodrigo Honda —e também no imaginário do espectador. Afinal, os que ficamos de quarentena, presos, tivemos tempo até para reparar nos desenhos da bolacha Passatempo que estampam uma obra de Honda ou nos botões das lavadoras de roupas pintadas por Menino. Ambos começaram a pintar há poucos anos e, sem galeristas, assumem também a venda do próprio trabalho na internet.

Ao ser questionado sobre seus quadros, Menino costuma dizer que são pinturas simples, mas não vazias. Elas retratam, contra fundo plano, filtros de barro, botijões de gás, caixas d'água, ferros de passar roupa e até vassouras, que, em seus modelos e formatos diferentes, acabam por sublinhar a distinção de classes sociais.

É que podemos —e talvez devêssemos, ele diz— manter com os objetos do cotidiano uma relação que extrapole o funcionalismo e se amplifique para a estética e para a sensibilidade. Menino acredita que, assim, se propiciem reflexões sobre como o consumo e a propaganda, por exemplo, impactam nosso dia a dia.

Essas reflexões, contudo, dependem mais do espectador do que do artista, opina Honda, que em seus quadros põe lado a lado a esponja de aço e a lata de sardinha, a caixa de chocolate em pó e a garrafa de refrigerante, um enlatado qualquer e o amaciante.

"Meu objetivo não é ‘dizer algo’, mas simplesmente retratar cenas cotidianas. Acontece que hoje as pessoas veem politicagem até num cachorro abanando o rabo. É inevitável que elas associem alguns trabalhos meus a críticas sociais. O que posso fazer? Não tenho controle sobre como interpretam minhas obras", diz.

Arquiteto que abandonou o escritório por "dificuldade de trabalhar em equipe" e falta de "paciência para as burocracias da profissão", Honda também retrata as ruas, com destaque para o ponto de ônibus, o bar e o comércio de bairro.

São obras que fazem sucesso nas redes sociais, onde seu trabalho foi descoberto a partir de uma publicação que viralizou há três anos no Reddit, um fórum de discussões.

Neste ano, foi a vez do Twitter. Em julho, recebeu quase 50 mil curtidas e 2 milhões de visualizações ao compartilhar na rede "Pão com Salsicha", natureza-morta em que retrata um cachorro quente posto numa mesa com potes de ketchup e maionese.

Nos comentários, os internautas elogiam suas obras pela semelhança com a realidade. Alguns até indagam se não se trata de "fotos com efeito de pintura". Outros ainda veem, principalmente na paisagem urbana e nos casebres periféricos, a tal crítica social.

'Pão com Salsicha', óleo de Rodrigo Honda
'Pão com Salsicha', óleo de Rodrigo Honda - Rodrigo Honda/Divulgação

O que para Honda não faz tanto sentido é o fio condutor da obra de uma centena de artistas brasileiros, Griffo e Menino entre eles, que tiveram seus trabalhos destacados pela exposição "Casa Carioca". Recém-encerrada, a mostra, que esteve em cartaz por um ano no Museu de Arte do Rio, recebeu 120 mil visitantes.

"Casa Carioca", afirma seu curador, Marcelo Campos, surgiu a partir de uma pesquisa do Conselho Nacional de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, realizada em 2015, que mostrou que 85% dos brasileiros constroem seus lares sem a supervisão de um arquiteto ou de um engenheiro.

É uma prática que pode pôr vidas em risco, algo que a exposição retratou para além do cubo branco. É o caso de "O Nome da Margem", escultura de Erica Ferrari e Maurício Adinolfi em que escoras metálicas improvisadas, perigando cair, seguravam uma caixa d'água destampada, exposta à chuva, às fezes de animais e, por consequência, à transmissão de doenças.

Se muitas vezes nem sequer são seguras, é de se esperar que construções como essas tampouco sejam confortáveis. Uma porção significativa delas, a pesquisa apontou, não funciona apenas como moradia, mas como local de trabalho, o que Lyz Parayzo evidenciou em "Manicure Política", uma intervenção rosa-choque em que ela se punha a cortar, lixar e pintar as unhas dos visitantes.

São condições de habitação que, atravessadas pela pandemia, se revelaram ainda mais problemáticas, diz Campos. "Boa parte das casas brasileiras não estava preparada para a pandemia, para abrigar uma pessoa em quarentena que precisa trabalhar, estudar. Menos ainda para abrigar uma família inteira."

'Manicure Política', intervenção de Lyz Parayzo que fez parte da exposição 'Casa Carioca' no Museu de Arte do Rio
'Manicure Política', intervenção de Lyz Parayzo que fez parte da exposição 'Casa Carioca' no Museu de Arte do Rio - Elisa Mendes/Divulgação

Se artisticamente há muito a ser dito, aos olhos do mercado os retratos do interior doméstico vêm na esteira da alta da arte figurativa em detrimento do abstrato, um denominador comum visto entre galerias de diversos tamanhos na volta da SP-Arte, a maior feira de arte do país, à sua primeira edição presencial em quase dois anos.

Um termômetro da recuperação do mercado local depois da crise pandêmica, os corredores da feira foram tomados, desde a abertura, pela queima de estoques comemorada entre taças de champanhe.

Era de se esperar. Ao se verem presos em casa do dia para a noite, afinal, aqueles que não precisavam se preocupar com a falta de comida na geladeira se cansaram da vista e correram para as lojas de materiais de construção, para os escritórios de arquitetura e, entre os mais abastados, também para as galerias de arte.

Não é de hoje, frisa Campos, o interesse da arte pelo ambiente doméstico. Surgiu séculos atrás, na Holanda, quando os pintores adentraram a intimidade humana como uma maneira de se opor à pintura sacra. Mas a pandemia pode ter feito esse interesse crescer, avalia o professor Agnaldo Farias, que ensina história da arquitetura e da estética na Universidade de São Paulo.

"Ao ficar preso em casa o tempo todo, você começa a escrever, fotografar, pintar o que está ao seu redor. O ambiente doméstico é uma fonte inesgotável de inquietudes."

Fazer Realidade

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