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'Eternos', dirigido por Chloé Zhao, é o filme mais humano da Marvel

Ganhadora do Oscar por 'Nomadland' não acerta em cheio, mas dá sensibilidade a semideuses que refletem mitos ancestrais

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João Montanaro

Eternos

  • Quando Estreia nesta quinta (4)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Richard Madden, Gemma Chan e Lauren Ridloff
  • Produção EUA, 2021
  • Direção Chloé Zhao

No novo episódio da super-saga cinematográfica-televisiva autorreferencial, acompanhamos um grupo de heróis imortais, os "eternos", humanoides criados por uma entidade alienígena superior, um "celestial", para auxiliar e proteger a humanidade ao longo da sua evolução social e tecnológica.

Seus principais inimigos são os "deviantes", uma raça de alienígenas animalescos, filha do mesmo "celestial" pai dos "eternos", mas que acabou saindo do controle por terem a capacidade de evoluir além do seu propósito inicial. É necessário o extermínio da raça "deviante" para garantir o futuro da humanidade, e é aí que os "eternos" entram.

Richard Madde e Gemma Chan em cena do filme 'Eternos', dirigido por Chloé Zhao - Sophie Mutevelian/Divulgação

Mas, como um híbrido de "Blade Runner" e "Prometheus", ambos de Ridley Scott, conforme os caçadores entram em contato com a natureza da sua caça, acabam descobrindo o que não esperavam, ou não gostariam de saber sobre a própria natureza e propósito. Se eram os deuses astronautas no universo Marvel, nada melhor que eles sejam os vilões da história.

O filme é dirigido pela oscarizada Chloé Zhao, que fez carreira com filmes contidos, semidocumentários, sobre personagens socialmente excluídos lidando com os absurdos do capitalismo tardio americano. Um histórico distante da tarefa de contar de forma coesa a história da relação de dez semideuses imortais que caminham entre humanos há 7.000 anos e agora precisam se reunir para evitar o fim do mundo.

Muito se falou de quanta liberdade a realizadora teria para trabalhar uma vez dentro das engrenagens do universo Marvel. O estúdio tem um histórico de colaboradores desistindo ou sendo substituídos em projetos, mas logo é possível identificar sua sensibilidade visual característica.

Um pastiche de Terrence Malick digital, com uma obsessão pela natureza e iluminação natural, filtrado por um olhar frio e distante no melhor estilo Christopher Nolan. Mas, diferente do diretor britânico, ou mesmo da maioria dos outros filmes da Marvel, seus personagens conseguem expressar emoções e falhas humanas genuínas.

É de se valorizar o esforço narrativo para desenvolver a relação desses dez personagens em apenas um filme. A tarefa passa longe de ser cumprida com sucesso —alguns personagens do elenco principal acabam recebendo muito pouco material ou tempo de tela para se desenvolver—, mas quando acerta é o mais próximo de conflitos e comportamentos humanos que personagens já exprimiram em um filme da Marvel.

Mesmo a violência das cenas de ação consegue, por vezes, expressar o real risco e peso dramático dos conflitos internos do elenco principal. Eu já falei que eles transam também? Não deixa de ser irônico que o mais humano que a Marvel já chegou a ser é exatamente num filme sobre semideuses alienígenas.

Em uma entrevista alguns anos atrás, o autor de quadrinhos Alan Moore disse estar preocupado com a fixação do mundo ocidental por filmes de super-herói. Ele argumentava que esses personagens haviam sido criados na década de 1930 como escapismo infantojuvenil e assim deveriam permanecer. A hipervalorização das suas histórias no mundo contemporâneo poderia ser indício da nossa própria infantilização, negação da realidade e uma fixação por encontrar soluções simplistas e espalhafatosas para problemas reais complexos.

Muita gente gosta de comparar a influência e importância dos super-heróis na nossa cultura com os mitos gregos e seu elenco de deuses, semideuses e guerreiros. O filme de Chloé Zhao pega essa ideia e a extrapola para a fundação da humanidade e de todos os nossos mitos sem considerar a cultura.

Seu elenco de "Eternos" é o sujeito oculto por trás das nossas histórias mais antigas, dos nossos avanços tecnológicos e sociais e, principalmente, das nossas religiões. Arishem, o "celestial" —pai dos "eternos", dos "deviantes" e, por tabela, arquiteto da nossa criação— nada mais é do que o próprio Deus.

Nada disso é alienígena ao material original de papel, a diferença é que não estamos mais diante de um gibi de nicho para crianças e adolescentes da década de 1960, mas em uma superprodução da Disney, a megacorporação que não descansará enquanto não for dona de toda a produção cultural de espetáculo do mundo ocidental.

"Eternos" é uma rara superprodução dirigida por uma mulher, com um elenco diverso e personagens que se comportam de forma muito mais humana do que precisam, mas é também mais um capítulo desse progressivo descolamento da realidade por meio da assimilação do complexo em favor do escapismo infantil.

Se o pós-moderno nos permitiu viver um mundo onde as narrativas míticas que nos domesticaram há séculos puderam ser deixadas de lado, nada melhor que uma megacorporação usufruindo delas para nos oferecer algum tipo de consolo frente ao crescente desamparo existencial generalizado.

No fundo, pode também ser um sinal de fadiga do gênero. Como os "eternos" —que descobrem a mentira da própria existência e propósito e precisam decidir entre se apegar à farsa ou seguir o próprio rumo—, também ficamos com a escolha de até quando vamos deixar esses filmes ditarem o cenário cultural cinematográfico do filme-espetáculo, usurpando o complexo e ditando a maneira que parte considerável do público vê o drama humano na tela.

Não foi dessa vez, mas, quem sabe, no próximo filme, Jesus Cristo não aparece na cena pós-créditos, prometendo se juntar aos Vingadores?

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