Descrição de chapéu Livros Flip

Humanidade será extinta se não compreender as plantas, diz botânico na Flip 2021

Primeiro dia da festa literária teve cerimônia indígena em homenagem à mata atlântica e debate sobre literatura e florestas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O povo guarani mbya abriu a Festa Literária Internacional de Paraty de 2021, a Flip, com cerimônia em homenagem à mata atlântica.

"A reza é para que toda a sociedade perceba a importância do respeito com todas as formas de vida", explicou a educadora Cristine Takuá na abertura do evento

"As crianças guaranis seguem rezando todos os dias na opy, a casa de reza, para que esse conhecimento seja passado e conservado, para que nunca deixe de existir."

Ela e a liderança indígena Carlos Papá conduziram a cerimônia, que começou às 16h deste sábado e foi transmitida no YouTube.

A festa trouxe ao centro o conceito de "Nhe’éry", termo que significa "onde as almas se banham" e é usado pelo povo guarani para designar a mata atlântica, bioma em meio ao qual está a cidade de Paraty.

Um coral com crianças entoou os cantos na praça da Matriz, onde havia aldeias indígenas antes da fundação da cidade.

"Paraty está no centro de Nhe’éry, temos uma floresta preservada. E são esses valores têm que ser resgatados", afirmou Mauro Munhoz, diretor artístico da festa, que também participou da abertura.

Após a cerimônia, Carlos Papá explicou que os guaranis cantaram para trazer força para o meio onde estão e para que as pessoas conheçam e passem a defender a mata atlântica.

"Estamos aqui em busca de uma vida melhor não somente para humanos, mas para os seres vivos que pertencem o Nhe’éry, a mata atlântica, onde tem insetos, pássaros, animais, água", afirmou ele.

A fala da liderança indígena dialoga com a proposta curatorial desta edição da Flip, a segunda virtual consecutiva em razão das restrições sanitárias da pandemia.

Já na mesa "Literatura e Plantas", transmitida a partir das 18h, o botânico italiano Stefano Mancuso, que publicou "A Planta do Mundo" e "A Revolução das Plantas" pela editora Ubu, conversou com Evando Nascimento, um dos curadores do evento, que é pioneiro na pesquisa sobre literatura pelo viés das plantas e acaba de lançar pela Record "O Pensamento Vegetal". A mediação foi da poeta e tradutora Prisca Agustoni.

Mancuso lembrou que a paixão pelas plantas surgiu já na fase adulta, durante seu doutorado. O botânico entende que, para quem não cresceu em um ambiente rodeado pelas plantas, esse amor só existe a partir do entendimento dessa forma de vida complexa. "Precisamos entender como as plantas conseguem imaginar, sentir, pensar. Se não, vamos continuar usar o termo ‘vegetal’ como um estado em que não se percebe mais o ambiente. Isso é uma loucura, é exatamente o contrário do que elas são", diz.

Já Nascimento lembra da influência da poesia de Drummond e das obras de Nietzsche para se reaproximar desse universo vegetal que estava muito presente em sua cidade natal, Camacã, zona rural da Bahia, bem como de sua experiência com autores de uma ciência renovada e aberta para essa sensibilidade.

"Os grandes cientistas precisam ser um pouco artistas, abrindo a percepção para o mundo. Os pesquisadores hoje passam todo o tempo na literatura científica, mas por mais precisa e metódica que seja, ela não dá acesso a mudanças de perspectiva", complementa Mancuso, que se disse influenciado pelo pintor brasileiro Luiz Zerbini, e pela sua técnica da monotipia para estudar os vegetais.

homem branco calvo com cabelos e barba branca e óculos
O cientista e escritor italiano Stefano Mancuso, autor de 'A Revolução das Plantas' - Divulgação

Da mesma forma, Nascimento, que foi aluno do filósofo Jacques Derrida (1930-2004), reconheceu ter sido por muito tempo reticente com a ciência positivista. No entanto, se deixou tocar por autores que resgatam a beleza do mundo vegetal. "Meu pulso se liga às raízes das árvores", cita o professor, lembrando o romance "Água Viva", de Clarice Lispector.

Ele lembra ainda de aspectos mais objetivos desses seres —"as santas a quem ninguém reza", segundo Alberto Caeiro—,fundamentais para nutrir nossos corpos, regular o clima, fornecer oxigênio e entre tantos outros aspectos.

"Todos os animais juntos representam apenas 0,3% da biomassa do planeta, enquanto as plantas são 86% dessa vida", lembra Mancuso. Para ele, não considerar as plantas como seres com inteligência é só um exemplo da estupidez e da falta de humildade do homem.

"Nossa espécie é jovem, temos 300 mil anos. Por que nos percebemos melhores que os outros seres vivos? Se a nossa espécie desaparecer, tudo que fizemos —da "Divina Comédia" à teoria da relatividade— também sumiria. Não ia interessar a ninguém".

O professor aponta que a vida média de uma espécie na Terra é de 5 milhões de anos. "Será que vamos viver mais 4,7 milhões de anos?", provoca Mancuso, chamando atenção para os aspectos globais que ameaçam a humanidade.

"Nós somos excepcionais cognitivamente, mas se nós nos destruirmos, será por pura burrice", resume Nascimento. E enquanto a sobrevivência da espécie acaba dependendo de decisões políticas, o professor lembra também do seu trabalho atual de uma "fitoescrita" —uma literatura ligada às plantas—, em que ele adiciona desenhos realistas de folhas (que ele chama de "fósseis") às suas produções.

"Eu trabalho com a ideia da pegada, do rastro vegetal, usando grafite, e misturo influências dos grafismos indígenas e das pinturas chinesas. Meu desejo é quebrar a representação clássica entre imagem e texto". Nesse sentido, ele se considera não alguém que "dá voz às plantas", mas um "ventríloquo", que as deixa passar pelo seu corpo.

Ele aponta ainda que devemos considera-las como irmãs. "Estamos em um momento de espalhar as sementes", diz. "O que vai sobrar daqui há milênios são nossas ruínas, tomadas pelas plantas. Ou agora nós tomamos a decisão de preservar a vegetação e os animais, ou nós seremos uma espécie extinta, que só deixou registros", conclui Nascimento.

Pela primeira vez na história, a organização da Flip elegeu um tema geral para a festa em vez de um autor homenageado. A programação toda gira em torno da relação da literatura com as plantas e a floresta. ​

As 19 mesas da programação, que se estendem por nove dias seguidos até 5 de dezembro, poderão ser vistas gratuitamente pelo canal do YouTube da Flip.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.