Gilberto Gil, ao som de 'fora, Bolsonaro' em Paris, deseja presidente mais preparado

Turnê em família prova que o artista ainda incorpora uma ideia de Brasil em apresentações energéticas para grandes palcos

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Paris

Em vídeo que circulou pelos celulares nos últimos dias, Gilberto Gil surge errático, sem se dar conta do que se passa a sua frente. Sua neta, Flor Gil, está prestes a se gravar fazendo uma dessas coreografias que se espalham nas redes sociais que nem rastilho de pólvora aceso. Eis que o avô aparece em quadro, para a cena involuntariamente e causa um riso de candura em quem vê —pela Internet que ele já cantou— o encontro de gerações.

"Essas novidades, o TikTok, por exemplo, eu nem sei o que é. Eu nunca entrei lá, eu não frequento muito a rede", diz Gil, desapressado, durante uma pausa no mesmo ônibus em que o vídeo inusitado foi gravado. O artista cruzou a Europa a bordo do veículo no mês de outubro, sua primeira turnê desde a eclosão da pandemia. E foi como um caracol, com a casa nas costas.

"Tem essa coisa mais confortável de estar com gente de casa, filhos, netos, esposa. Isso tem um sabor especial. E facilita também porque dá uma tonalidade afetiva mais nítida e menos dispersa. Não são muitas pessoas de procedências variadas. O núcleo principal é da família. A viagem fica mais em casa, como se a casa estivesse viajando," conta ele.

Em palco, Gil se apresenta junto dos netos Flor e João e do filho Bem. Além de Adriana Calcanhotto, geralmente abrindo os shows, Marcelo Costa é o único membro sem o sobrenome do clã. O baterista é dono de um vasto histórico de contribuições à MPB e substituiu José Gil, que se lesionou pouco antes do início da viagem. Esse filho se juntou ao grupo em Paris, como percussionista, marcando a primeira apresentação da turnê com banda completa.

O espetáculo começa com a atualíssima "Expresso 2222", um baião do futuro que entrega a habilidade de Gil empacotar ideias complexas em umas quantas progressões de acorde —uma riqueza de melodia ouvida em artistas do quilate de Luiz Gonzaga. Em "Viramundo", composta em parceria com o poeta Capinam, Gil segue pelo idioma do forró avançado e encaixa versos heptassílabos numa embolada de passo lento.

Na sequência, a banda dá um curso de tronco comum da música brasileira enquanto Gil mostra mais uma vez por que é não só compositor, mas também um intérprete singular. O samba jazz, talvez manco pela falta de um piano, vem com "Chiclete com Banana", eternizada por Jackson do Pandeiro. "Upa Neguinho", de Edu Lobo, revisita os tempos de festivais e do programa "Fino da Bossa". Em "É Luxo Só", Gil exibe o violão sambado e rítmico marcado por João Gilberto.

"O critério básico do repertório é cobrir um espectro amplo do meu trabalho, e não só com músicas minhas, mas com coisas que sempre entraram no rol do meu repertório de interpretação", diz Gil. "E tem alguma coisa em função da presença da família, da Flor. Tem duas canções incluídas para ela."

A primeira dessas faixas é "Nel Blu, Dipinto di Blu". Mais conhecida como "Volare", graças à interpretação do grupo Gipsy Kings, a valsa é seguida por "Norte da Saudade". A neta de Gil ganhou destaque ao cantar uma versão em inglês deste reggae composto por seu avô para o disco "Refavela", de 1975. Em ambas é possível ouvir uma jovem ainda tateando sua voz, entre cabeça e tórax, embora não seja arriscado dizer que Flor tomará o primeiro plano do palco como as tias e cantoras Nara e Preta.

Esse interlúdio traz as únicas novidades da bagagem de Gil, mas ele não exclui a possibilidade de um registro de inéditas. "É possível que, sim, eu faça um próximo álbum nos moldes dos anteriores. Um álbum com repertórios longos, dez, 12 canções temáticas e um conceito temático geral. É bem provável que eu faça", diz ele.

Nada desse possível disco terá sido feito durante a pandemia. Gil diz que não se dedicou a compor nesses últimos meses, com a exceção de dois projetos encomendados –uma faixa para trilha sonora da série "Sob Pressão" e a canção "Refloresta", para a campanha de reflorestamento do Instituto Terra.

Os únicos momentos solo do artista em palco são para suas canções de amor. "Drão", aquele que secou, e "Flora", o que se arvorou. Pesa o silêncio entre as quase mil pessoas que assistem ao show, os acordes do violão se suspendem e tossidas à espreita lembram que a pandemia ainda não é história.

Na canção de 1985 "Touche Pas à Mon Pote", já com banda novamente, a realidade do dia volta a atravessar a obra do artista. A música leva o slogan de movimentos antirracistas que marcaram a França em meados dos anos 1980. Título e refrão podem ser traduzidos para "não toque no meu mano", imperativo que se recolore naquela casa de show –a algumas centenas de metros dali é possível encontrar barracas de imigrantes que tentam a vida na Europa.

"As pessoas sentem mais essa canção. As pessoas têm reagido a sua substância e identificam nela a abordagem de uma problemática que lhes diz respeito. É a questão da imigração, dos refugiados, das ex-colônias", diz Gil. "A música, com o passar do tempo, ganhou importância porque essas questões estão mais próximas da preocupação cotidiana das pessoas."

A linha de baixo gorda da canção faz a ponte entre o zouk das Antilhas e o caldo de músicas eletrificadas da Bahia, ao passo que também abre as portas para a seção mais funkeada do show. "Palco" vem numa versão mais leve, sem os arranjos disco music de Lincoln Olivetti e Robson Jorge do álbum "Luar". Em "Sarará Criolo" e "Back in Bahia", Gil brinca com as divisões de cada compasso, ziguezagueia com os versos e termina frases onde outras começam.

Como se não houvesse mais de onde sacar sucessos, Gil e banda aceleram o passo em "Andar com Fé". Em "Aquele Abraço", ode de um baiano ao Rio de Janeiro, os protocolos se quebram. Parte do público se levanta, se aglomera, toma a frente do palco para sambar o samba —e não "la samba", como Gil fez questão de destacar em uma de suas poucas falas da apresentação.

O cover de "Stir It Up", de Bob Marley, antecede a saída. A volta para o bis é com "Madalena", um xote sertanejo com levada de samba junino baiano. A faixa até seria uma boa síntese da obra ali exposta, e mesmo um ponto de encontro entre início e fim de show, mas faltam a ela os tons apoteóticos com que Gil acostumou os brasileiros.

Essa tarefa cabe a "Toda Menina Baiana". Com a Philharmonie tomada pelo português brasileiro, até o mais francês dos franceses acompanha o já clássico jogo de pergunta-resposta de Gil –ele canta Luanda, Havana e Bahia, o público repete, e todos conectam o Atlântico negro que desagua na música do artista.

Tão logo Gil sai de cena, gritos de "fora, Bolsonaro" são ouvidos entre o bochicho de fim de festa. "As pessoas têm se manifestado às vezes. Não vejo reflexo dessas questões no meu trabalho, não tenho músicas que tratem dessas questões", diz o artista. "Mas, como cidadão, como pessoa, acompanho tudo com muito interesse e expectativa, esperando que a próxima eleição requalifique o voto brasileiro para que a gente tenha um grupo político também mais qualificado para dirigir o país."

A gritaria foi pouca considerando que a palavra de ordem é um lugar-comum nas apresentações de uma certa categoria de artistas brasileiros na Europa. O público que foi ver o Gil era formado em grande parte por uma dita intelligentsia brasileira de trabalhadores e estudantes que podem arcar com o alto valor do ingresso.

No Brasil —Gil considera levar a turnê ao país—, o público talvez não seja diferente daquele que esteve em Paris. A única lembrança de Brasil na Philharmonie no dia seguinte ao show era a exposição do fotógrafo Sebastião Salgado, já na sua última semana. As outras memórias, trazidas por Gil, se transformaram em vídeos nas redes sociais.

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