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desigualdade de gênero

Gordofobia não perdoou Marília Mendonça nem no dia de sua morte

Feitos da cantora foram ofuscados por detalhes que nada tiveram a ver com sua ascensão, o seu peso e sua forma física

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Marília Mendonça tinha só 14 anos quando se sentou à mesa como compositora para negociar uma letra feita por ela aos 12. Sua primeira canção debutou nas rádios aos 15, e aos 22 seu nome já havia sido consagrado como o da artista mais ouvida do país. Mendonça foi mãe, filha, mulher e o rosto do movimento que abriu caminhos para o eu lírico feminino nas afamadas mesas de bar das canções sertanejas.

No dia do acidente aéreo que encerrou sua vida aos 26 anos, ocorrido na sexta-feira, todos os seus feitos de repente se viram ofuscados por um detalhe que nada teve a ver com sua ascensão –o seu peso.

A cantora Marília Mendonça - Divulgação

A vigilância sobre as medidas de seu corpo foi constante ao longo de sua carreira. "Motivação! Marília Mendonça já emagreceu 20 quilos", "Marília Mendonça revela quanto emagreceu em seis meses" e "Marília Mendonça faz desabafo após críticas por perda de peso" foram alguns dos títulos de diversas reportagens a seu respeito.

"Me desrespeitam desde quando me entendo por Marília Mendonça, gorda, feia, mal vestida, mal cuidada", escreveu Mendonça em postagem de janeiro deste ano. "Não dói mais em mim porque fui forte o bastante para não deixar matarem os meus sonhos", seguiu a cantora, que por vezes foi alvo de comentários dos próprios fãs.

Quando emplacou o hit "Infiel" há cinco anos, a canção mais ouvida daquele 2016, Mendonça foi questionada por uma revista feminina que se diz feminista se já tinha sofrido preconceito por não ser magra (será que a mesma pergunta seria feita a um artista estreante homem?). "Eu não estou nem aí", rebateu. "Sou feliz e quero, sim, que as pessoas me vejam como exemplo. Se um dia resolver emagrecer, será por vontade própria e não porque faz bem para minha imagem", continuou.

No ano seguinte, Mendonça passou pela implementação de um balão gástrico. Ficou com ele por poucos dias. "Desidratei muito porque vomitava até a água que tomava. Tive que tirar em uma semana", contou numa live. Em 2019, ela decidiu fazer uma abdominoplastia.

Todas as suas perdas e ganhos de peso foram religiosamente registradas pela imprensa —e também por Mendonça, que, nos últimos meses, enveredou por dietas e exercícios. "O que eu vivo hoje é uma escolha exclusivamente minha, de mais ninguém", escreveu a cantora em junho deste ano, ao falar sobre o tema.

Após a confirmação de sua morte, na sexta, a fiscalização em torno do peso da cantora marcou presença em análise publicada neste jornal pelo historiador Gustavo Alonso. O texto exaltava a magnitude da carreira trilhada por ela quando o autor observou que "Marília Mendonça era gordinha e brigava com a balança", afirmando que recentemente a sertaneja vinha se tornando "bela para o mercado". "Mas definitivamente não foi isso que o Brasil viu nela", ponderou o autor.

Se a intenção era dizer que Marília Mendonça superou barreiras da indústria fonográfica, havia muitos outros exemplos e formas de fazer isso que não por meio de um cacoete gordofóbico. Recorrer a um eufemismo há muito entendido como ofensivo para se referir a um corpo gordo —"gordinha"— para depois dizer que isso não importou aos olhos do público não torna a afirmação menos grosseira. Era um obituário, afinal, e é difícil acreditar que essa observação apareceria se o personagem fosse um cantor.

Numa realidade em que corpos são marcados por eixos de diferenças como gênero, raça, classe, idade e tamanho, nem a estrela que cantou a liberdade e o amor próprio passou incólume. Nem mesmo no dia de sua morte, quando até sua qualidade vocal foi posta em xeque pelo colunista.

Se a busca pela perda de peso era fruto de pressão ou de uma vontade genuína, cabia apenas a Marília legitimar. Se declarar empoderada ou feminista pavimenta só o início da compreensão de todas as tentativas de controle e de sabotagem exercidas historicamente sobre os corpos de mulheres, cisgênero e transgênero, que miram espaços de poder —lugar que Marília ocupou como rainha, a despeito de todos os olhares.

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