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desigualdade de gênero

Marília Mendonça ter sido 'gordinha' e depois ter emagrecido nada importa

Na arena pública, a imagem positiva de uma pessoa gorda é o compromisso de manter sua figura como autoafirmação

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Aline Lima

É mestre em Letras pela USP (Universidade de São Paulo)

No ano passado, no seu aniversário de 32 anos, a cantora britânica Adele divulgou uma foto em que aparecia muito mais magra. A reação nas redes foi, como sempre, intensa e difusa. Se houve quem ressaltasse a sua beleza e celebrasse a transformação, houve igualmente quem expressasse decepção pela perda de uma representante curvilínea na elite cultural global.

Uma parte do público a admirava, até então, não apenas por seu talento musical mas também por sua imagem, seu corpo e a positividade associada a ele, como uma prova contrária da alegada incompatibilidade entre gordura e beleza.

Essas pessoas se sentiram traídas e foi exatamente disso que a acusaram, de capitulação a pressões midiáticas e sociais em benefício de um padrão estético. Diante de tais queixas e acusações de gordofobia, Adele decidiu que precisava se defender: "Entendo que muitas mulheres estejam magoadas, mas eu ainda sou a mesma pessoa."

Explicou também ter notado que os exercícios físicos aliviavam sua ansiedade e, assim, as mudanças na alimentação e rotina "nunca tiveram nada a ver com perda de peso", mas um ajuste entre a condição física e mental. "Pensei que se eu puder tornar meu corpo fisicamente forte, sentir e ver [essa força], então talvez um dia eu possa tornar minhas emoções e minha mente fisicamente fortes."


O que parecia estar em questão, pelo desabafo de Adele, era menos o emagrecimento do que seu sentido. Foi preciso trazer à tona os elementos subjetivos específicos que justificassem a redução de peso e volume de seu próprio corpo sem comprometer a aceitação geral de corpos mais pesados e mais volumosos.

Na rigidez da arena pública, o corolário da imagem positiva de uma pessoa gorda é o compromisso de manter e ostentar plenamente sua figura como um ato de resistência e autoafirmação, supondo, entre identidade e corpo, uma relação estanque ou simples —coisas que ela não é e dificilmente será.

A corda tensiona para o outro lado também. Se o argumento estético que repele a adiposidade já não é tão aceitável socialmente, a medicina forneceu apelos e fundamentos aos que não falham em manter uma vigília constante, algo condescendente, desse corpo que deve emagrecer para salvar a própria saúde.

Não por acaso esse episódio todo se deu às custas de uma mulher. É sobre o corpo feminino que recai com mais força uma série de demandas e expectativas antagônicas que resultam, sem surpresas, em frustração e ansiedade.

A plasticidade do corpo humano, da qual tatuagens, implantes, próteses e cirurgias são indícios, frequentemente joga contra as mulheres, em especial as mulheres gordas. Para elas, o ato de emagrecer ou engordar, longe de ser mera intervenção em sua constituição física, está carregado de significados que desencadeiam um escrutínio que trata o IMC como um problema moral.

Os mesmos termos que enquadraram Adele depois da postagem de uma foto ressurgiram neste jornal, no obituário de Marília Mendonça, vítima de um acidente trágico na última sexta-feira. Também a ela foi atribuída uma suposta contradição, ou uma traição de si mesma, porque "afirmava a poética da autoaceitação, mas aparentemente teve que mudar sua imagem e emagrecer".

Quaisquer que tenham sido as razões de Mendonça, a "gordinha" que "brigava com a balança", para emagrecer, elas infelizmente foram insuficientes para sustentar a integridade da cantora diante da realidade cínica do showbizz.

As contradições são matéria-prima da arte e Marília não esteve alheia a elas; compôs e cantou amores marginais, traições, fraquezas, arrependimentos, ressentimentos os mais variados. O corpo, o desejo, a sexualidade, o amor —arena das maiores e melhores contradições humanas— nada disso é estranho à obra da rainha da sofrência, mas, de alguma forma, a incontornável questão do peso se apresenta.

Porém, a questão está mal posta de partida. Quase desnecessário dizer que o obituário de um homem não seria marcado por observações a respeito de sua aparência, sobretudo nestes mesmos termos. Importa nada que Mendonça tenha sido gordinha, que tenha depois emagrecido e por quê, quando temos que lidar com seu desaparecimento repentino, grotescamente precoce e violento.

O luto impõe uma reorganização das prioridades para que nós possamos nos afastar dos vícios cotidianos do olhar, ainda que temporariamente. O que transbordou, nas horas seguintes à notícia terrível, foram relatos acerca do talento indiscutível e do carisma de Marília Mendonça. E o imenso afeto de seus familiares, amigos e milhões de fãs.

Esses relatos e esse afeto pertencem ao legado da artista tanto quanto suas composições e interpretações, eles projetam na posteridade o universo que ela criou para si e para seu público; na hora de sua morte, eles são a ode mais justa à vida de Marília Mendonça.

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