Descrição de chapéu
Julio Wiziack

Nelson Freire e Martha Argerich eram almas gêmeas em sintonia

Quando tocavam a dois pianos, as partes juntas soavam perfeitamente como uma só, cada um com sua expressão

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"O Nelson morreu", dizia a mensagem da minha professora de piano nesta manhã. Tomei um susto. Ela ligou e me disse que, no circuito dos pianistas, a informação já vinha de musicistas da Europa e do Brasil. Outro pianista chegou a receber um suposto áudio do marido de Nelson Freire confirmando da morte logo pela manhã.

Busquei uma gravação no YouTube. A primeira que veio foi o disco dele com Martha Argerich em uma recital de Salzburgo, na Áustria. Achei curioso porque falar de Nelson Freire é também falar de sua "alma gêmea", a pianista argentina Martha Argerich, outro gênio incontestável do teclado.

O pianista Nelson Freire em uma apresentação em Cannes, na França - Pascal Guyot/AFP

Ambos se conheceram estudando em Viena, na Áustria, e se tornaram mais que amigos, confidentes.

A sintonia fez com que a sonoridade de um ao piano se assemelhasse demais à do outro a ponto de, durante uma sessão de gravação de Argerich para a Deutsche Grammophon, os técnicos pensarem que a pianista estava tocando uma rapsódia de Brahms quando, na verdade, quem dedilhava era Freire, que a acompanhou na viagem e aconselhou como a amiga deveria interpretar aquela peça.

Poucas parcerias se fizeram tão completas. Quando tocavam a dois pianos, bastava um olhar para que mudassem imediatamente as partes de cada um. Argerich passava a tocar o trecho que Freire deveria, e ele, o dela. As duas partes juntas soavam perfeitamente como uma só —muito embora, separadamente, cada um desenvolvesse sua própria forma de expressão.

Preocupado com a saúde do amigo, Argerich esteve no Rio na semana passada. Segundo amigos, o pianista estava recluso e longe do instrumento a que dedicou sua vida. Freire sofreu uma queda, fraturou um osso do braço direito, e estava sem tocar.

Para quem fez do piano sua vida, ficar sem ele e longe dos palcos não deve ser fácil.

Embora os movimentos estivessem sendo recuperados pela fisioterapia, ele mergulhou numa depressão, ainda segundo amigos, acentuada pelo isolamento causado pela pandemia.

Essa situação levou Argerich a cancelar sua participação como jurada do concurso Chopin deste ano, um dos mais prestigiados do mundo, e viajar ao Rio de Janeiro para ficar com o amigo. Freire também faria parte da banca examinadora do concurso, mas desistiu.

Quem o visitou no Rio nesta semana afirma ter encontrado Freire abatido, cabeludo e barbado, uma espécie de Johannes Brahms depois do "Op. 117" —em seus últimos opus [trabalhos publicados] o compositor alemão teria traduzido sua depressão à espera da morte.

No passado, Freire ajudou Argerich a se recuperar da aflição de se apresentar sozinha. Por uma época, a pianista se recusava a dar recitais. Passaram a tocar juntos, uma espécie de terapia que a trouxe de volta aos palcos.

Muitos achavam que eram namorados, casados até. Freire, discreto, teve um marido, o médico Miguel Rosário, que tive o prazer de conhecer por meio de um amigo em comum.

No documentário sobre sua carreira dirigido por João Moreira Salles, o próprio Freire tratou de explicar o sentimento que o uniu a Argerich desde muito cedo —a amizade.

"Você me achava feia", diz Argerich ao amigo, que sorri acanhado e responde. "Feia não." Ambos riem.
Argerich sempre foi uma mulher bonita. Muitos, maldosamente, dizem que ela só venceu o concurso Chopin, em 1965, por ser mulher e bonita.

A diferença de pontuação entre ela e o segundo colocado, o brasileiro Arthur Moreira Lima, foi pequena, segundo relatos registrados à época. Evidentemente, um absurdo.

Segundo Moreira Lima, Argerich começou as provas entre os seis primeiros, mas foi ganhando confiança e melhorando etapa a etapa das provas até vencer a disputa.

Freire sempre foi avesso a concursos. Chegou a se inscrever em diversos deles e desistia na hora. Venceu dois dos mais importantes, quando se permitiu participar. Ele, que apreciava o talento inato dos pianistas de jazz que tocam "de ouvido", invejava essa habilidade. Freire não tocava de ouvido, mas tinha uma leitura à primeira vista impecável. É famosa a cena em que toca para Argerich a versão escrita pelo compositor húngaro Franz Liszt de "Wigmund", obra original de Robert Schumann.

Ela pergunta "você já tinha tocado antes?". E ele, na sua simplicidade, responde "não, estou lendo agora".
Tanto Freire quanto Argerich marcaram minha formação musical desde cedo. Costumava pôr o segundo concerto de Beethoven para tocar no aparelho de som e dedilhava junto com Argerich. Depois, estudava tocando com uma gravação de Freire. Só vim a descobrir a importância de ambos muito tempo depois.

Revisitei há pouco, ainda pego de surpresa pela notícia da morte de Freire, a gravação de sua prova no Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro, em 1957. Por curiosidade, também busquei no armário a gravação de dois concertos de Argerich —o primeiro de Beethoven e o concerto de Schumann— quando ela tinha oito anos e ainda morava em Buenos Aires, sua cidade natal.

É de arrepiar perceber que ambos já eram os pianistas que se tornaram. Como o vinho e o uísque, ambos apenas ficaram mais encorpados e maduros. A estrela de cada um já brilhava intensamente desde muito cedo.

Também é impressionante que, com quase oito décadas de vida, tanto um quanto outro exibam uma forma física impecável de tocar, sem ao menos ceder em velocidade, por exemplo, em algumas peças.
Assistir a uma apresentação de Argerich hoje será um pouco relembrar o Freire.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.