Descrição de chapéu

Ao partir, Nelson Freire deixa uma música maior do que a que encontrou

Documentário de João Moreira Salles é de rara beleza e, ao lado de outros registros, eterniza memória do pianista

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Pedro Taam

Pianista e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Num significativo trecho de "Nelson Freire", documentário de João Moreira Salles, o artista do título se vê encurralado pelo cineasta com a pergunta que cedo ou tarde surge para materializar o que se espera dos artistas. Como exprimir o inexprimível, pensar o impensável, dizer o indizível? Ou, do ponto de vista da técnica, como falar do que não se sabe, contar o que não se testemunhou e incitar emoções nunca experimentadas?

"Tem que se fabricar", responde o pianista, tão sábia quanto laconicamente, com uma naturalidade que poderia disfarçar, para um olhar distraído, o dispêndio que essa simplicidade laboriosa exige para ser confeccionada.

Igualmente enganador, em sua objetividade ingênua que à primeira vista soa quase prosaica, é o primeiro comentário que se escuta, no mesmo documentário, Martha Argerich tecer sobre o amigo. "Quando eu conheci o Nelson, ele tinha uns cílios fantásticos, sabe? Muito compridos."

Concertos dos pianistas Nelson Freire e Martha Argerich na Sala São Paulo, em 2004 - Tuca Vieira/Folhapress

Na eloquência da montagem, o mais impressionante é que, passada a palavra a alguém que entendemos ser uma igual do pianista, e que portanto estaria autorizada a falar com a mesma propriedade que ele do universo de que ambos compartilham, o primeiro adjetivo que brota em sua voz é "fantásticos", antes mesmo que a vastidão desse universo seja esboçada pela menção a outros artistas de mesmo quilate —Rubinstein, Horowitz. Argerich continua, "e tocava um pouco do fá menor de Chopin".

No desenrolar da rememoração dos pianistas, outras ações se somam à de tocar. Narrando ter estado em apuros com uma peça e ter sido resgatada por Freire, a amiga fala ao amigo. "Você me disse umas coisas, me deu um jeito." Na singeleza do dizer é que se encontra a generosidade da dádiva do pianista, que não é tanto uma coisa concreta, mas um caminho, um desbloqueio ao curso da ação.

No encontro, alguém dá algo de si a alguém que não o recebe como "outro" porque imediatamente o assimila e sintetiza como algo seu. No "deu um jeito", o "deu" é dele, mas o "jeito" é dela, numa cumplicidade que, abstraídas as pessoalidades de um e de outro, é a de duas pessoas quaisquer. A dádiva, aqui, é só parcialmente dar algo de si, mas é principalmente catalisar, desbloquear ou fomentar que o outro crie algo dele; é, na colaboração de duas potências afins, mais "multiplicar" do que meramente "dar".

No espírito de afinidade de quem compartilha não o que faz, mas talvez um pouco do jeito de o fazer, Argerich conta que Freire foi com ela ao estúdio por ocasião da gravação de seu primeiro disco. Ali, ela lhe disse "se eu não sei, você toca!". "Ninguém vai ver a diferença."

Não é de semelhança que se trata nem de fingir que não é possível distinguir um do outro. O que se pode depreender dessa pequena frase é a confissão de uma afinidade que, transbordando qualquer "parecer", revela um parentesco, um copertencimento, uma ecologia, uma relação.

Não que eles sejam iguais ou que não se possa notar quase imediatamente a diferença, mas é inegável que a mesma coisa os anima, que o que fala por meio de um é o mesmo que fala por meio do outro. É isto que é igual —a eloquência da música, a intensidade telúrica de um poder comunicativo em sua mais alta expressão em uma dada época.

Olhando para o pianista pelo prisma de sua amiga-irmã e mais qualificada perscrutadora, podemos, munidos dessas lentes metacríticas que fabricamos, aspirar corrigir alguns equívocos que são tão costumeiramente ditos sobre ele.

Frequentemente dito tímido, Nelson Freire nunca deixou de subir ao palco para dar recitais solo nem de manter uma agenda exaustiva de concertos ao longo de sete décadas. Tido como avesso a entrevistas, permitiu ser filmado de perto, por vários meses e em vários países do mundo, em público e na intimidade, o que resultou num documentário de inestimável valor e rara beleza.

Descrito como alguém de poucas palavras, ele nos deixou um legado de performances, gravações e registros que eternizam sua memória e engrandecem sua arte. A música que ele nos deixa, ao partir do nosso mundo, é maior do que a música que ele encontrou quando veio a ele, e isso porque agora a podemos ouvir —ou melhor, enxergar— através de seus olhos de cílios fantásticos.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.