Descrição de chapéu

Nelson Freire foi o elo entre a era de ouro do piano e terceiro milênio

Músico morreu na madrugada desta segunda, em sua casa, no Rio de Janeiro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Carlos Drummond de Andrade, na "Confidência do Itabirano", se refere a um "alheamento do que na vida é porosidade e comunicação". Mineiro como Drummond, Nelson Freire não era de Itabira, mas de Boa Esperança. Mas esses 300 quilômetros de distância não fizeram dele um artista menos introspectivo, avesso a holofotes e badalações —no qual quem falava era a arte.

E, quando a arte de Nelson Freire falava, era com eloquência das mais raras. Pianistas como ele, no nosso país ou em qualquer outro país, houve muito poucos. Não por acaso, seus pares o designavam como o "Reverendo Nelson". E, para além de seu instrumento, no terreno da música erudita Freire constituía, atualmente, nosso maior expoente.

Não, não se trata de exagero de alguém que escreve na comoção de um momento que preferiríamos todos evitar. O legado fonográfico de Nelson Freire fala por si. O talento exuberante está presente desde os registros caseiros de infância e adolescência e ganha um caráter cada vez mais consciente a partir dos estudos com Bruno Seidlhofer, em Viena –e do convívio com Martha Argerich, a vulcânica pianista argentina com a qual ele manteve uma amizade de décadas e uma parceria musical intermitente, porém sempre marcante e significativa.

Em 2006, Nelson Freire entrou na trilha sonora da novela "Páginas da Vida", de Manoel Carlos, na TV Globo, com a "Melodia para Flauta", da ópera "Orfeu e Eurídice", de Gluck, em transcrição para piano solo de Sgambatti. Depois do documentário "Nelson Freire", de João Moreira Salles, de 2003, foi o maior tranco que sua popularidade recebeu por aqui. E não havia melhor item para apresentar o músico ao grande público —não apenas pela qualidade intrínseca da miniatura, que Freire executava com apuro de ourives, mas pelo próprio significado simbólico desta peça para ele.

Era o bis "oficial" de Nelson Freire, aquele que ele tocava quase sempre —enquanto ele não o tivesse executado, sempre havia a esperança de que pudesse voltar ao palco. E que constituía um tributo à sua grande inspiração ao teclado —Guiomar Novaes.

Em certo sentido, podemos considerar Freire como o elo entre essa chamada "era de ouro" do piano, da primeira metade do século 20, da qual Guiomar foi uma brilhante expoente, e o terceiro milênio. O extremo cuidado sonoro de seu pianismo, com um caráter etéreo, que o microfone, mesmo com toda a tecnologia de hoje, consegue captar apenas parcialmente, e que constituía o principal fascínio da arte de Nelson Freire, era derivado sobretudo de sua filiação estética e sentimental à escola de Novaes.

O mundo das plataformas de streaming permite navegar pelo rico catálogo de Nelson Freire e explorar sua sedutora mistura de engajamento emocional, vigor físico, virtuosismo avassalador e sensibilidade refinada. Meus favoritos –a dupla de concertos de Brahms com Riccardo Chailly, a visionária "Fantasia" de Schumann, os registros com Argerich e cada nota de Chopin que ele teve a generosidade de capturar em disco. Mas há também Bach, Mozart, Beethoven, Liszt, Rachmaninov e diversos registros de recitais ao vivo, que capturam como ele ia gradualmente enfeitiçando a plateia e capturando os corações de teatros lotados.

Informalmente, Freire podia ser bastante divertido —suas imitações do presidente Dutra, por exemplo, eram impagáveis. Mas, nos últimos tempos, ele vinha bastante deprimido. Tudo começou com uma queda em uma calçada no Rio de Janeiro, que resultou em fratura e cirurgia no braço direito, no final de 2019. Depois veio a pandemia, o isolamento, a perda de pessoas queridas. E uma nova contusão.

Convidado a integrar o júri do Concurso Chopin, em Varsóvia, no mês passado, acabou recusando. Argerich, que deveria fazer parte da banca com ele, também saiu, e resolveu dar assistência ao amigo. No último dia 18, as redes sociais foram inundadas de mensagens de fãs, celebrando seu 77º aniversário. Tomara que toda essa onda de carinho tenha, de alguma forma, chegado a ele.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.