Oficina Brennand molda seu futuro com Ernesto Neto e 'Aranha' de Louise Bourgeois

Olaria transformada em ateliê por Francisco Brennand no Recife constrói ponte para o presente nos 50 anos de sua fundação

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fotografia de escultura

Fotografia de Sofia Borges retratando escultura em cerâmica do artista pernambucano Francisco Brennand no seu antigo local de trabalho, no Recife, em ensaio para um livro comemorativo a ser lançado pelo instituto Oficina Brennand Sofia Borges/Reprodução

Recife

São quase dois anos desde que Francisco Brennand, morto aos 92, já não caminha pela babilônia de barro que ergueu na antiga olaria do pai, no Recife, desfilando seus quase 1,90 metro de altura e a barba branca, comprida, o bigode raspado na altura do nariz.

Afora a sua ausência, sentida pelo público —era comum esbarrar com o artista por ali e espiá-lo trabalhar—, pouco parece ter mudado no local. Os muros da cidadela trazem as citações de escritores e filósofos que ele transcreveu com uma caligrafia floreada, a mesma com que assina suas obras. Cantos gregorianos ainda ecoam nos armazéns que guardam o seu bestiário particular, centenas de seres fantásticos em cerâmica que combinam mitos clássicos, histórias bíblicas, fauna e flora locais e peitos, bundas, formas fálicas. Os fornos emanam um vermelho incandescente.

Fotografia de Mauro Restiffe retratando a Oficina Brennand - Mauro Restiffe/Reprodução

As mudanças pelas quais a Oficina Brennand passa agora acontecem nos bastidores. Dois meses antes da morte do seu fundador, o local enfim se tornou um instituto, num movimento capitaneado pela sua sobrinha-neta, Marianna Brennand Fortes. Ela, que é cineasta e cresceu em Brasília, conta que só foi se aproximar de Brennand ao filmar um documentário sobre ele em 2002. Antes, o via esporadicamente, em férias escolares e fins de semana de visita ao Recife, "como qualquer turista que viesse aqui e desse a sorte de encontrá-lo".

Marianna assumiu a presidência do instituto. Trouxe para a equipe nomes fortes das artes plásticas do país —Lucas Pessôa, diretor do Masp entre 2014 e 2018, ocupa a direção geral, enquanto a direção artística ficou a cargo de Júlia Rebouças, integrante das equipes curatoriais da 32ª Bienal de São Paulo e do Inhotim e à frente do último Panorama do MAM, o Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Juntos, eles convidaram um grupo de notáveis para formar um conselho independente. Inscreveram pela primeira vez o projeto em leis de incentivo, batendo o recorde de captação da Rouanet em Pernambuco e permitindo ao orçamento anual quase triplicar, segundo Pessôa. Deram o pontapé inicial a um programa de residências artísticas e educativas. E começaram a planejar a expansão da área expositiva, assim como melhorias na estrutura de acolhimento de um público que começou a chegar ali espontaneamente, por indicação dos taxistas da região.

Agora falta pouco para o público ver as novidades da oficina de perto. No ano que vem, a "Aranha" de Louise Bourgeois firma suas longas patas ali, e Ernesto Neto apresenta uma instalação inédita de grandes dimensões, comissionada pelo instituto —Rebouças conta que o artista, conhecido por usar materiais têxteis como crochê e o nylon de meias-calças para evocar formas orgânicas, vivas, esteve na oficina em duas ou três ocasiões, experimentando com a cerâmica.

O marco inaugural dessa nova fase acontece já este mês, com a abertura de uma exposição panorâmica de Brennand no dia 21, "Devolver a Terra à Pedra que Era: 50 Anos da Oficina Brennand". É uma mostra que, nas palavras da venezuelana Julieta González, que assina a curadoria com Rebouças e tem passagens por museus como o Tate Modern, em Londres, e o Museu de Arte do Bronx, em Nova York, "apresenta o futuro da instituição". "É uma visão artística que vai se desenvolver nos próximos anos", diz.

Na prática, "Devolver a Terra à Pedra que Era" busca esclarecer o tripé conceitual que guia a programação do instituto, formado por natureza, território e cosmologias. São temas recorrentes na obra de Brennand, mas que servem também como bússolas para os interesses e preocupações da instituição nascente.

Território, por exemplo, diz respeito ao esforço do instituto de fortalecer laços com seu entorno, obedecendo à máxima de Euclides da Cunha de que "a geografia prefigura a história" que o artista gravou em um painel. Natureza, à consciência ecológica e à preservação ambiental, mas também a um empenho de reflexão contínuo sobre a própria identidade. E cosmologias, a uma forma de encarar fontes e saberes sem hierarquias que é típica de Brennand.

Na mostra, o último eixo é introduzido por uma lista feita pelo artista em 1959 de "21 temas para pintar", em que surgem tópicos como "Adão e Eva" e "a luta".

Se poucos desses podem ser imediatamente reconhecidos nas esculturas e pinturas expostas a seguir, o compilado cheio de referências mitológicas oferece uma pista para entender a obsessão do artista pela criação —e pela destruição.

Não é à toa, diz Rebouças, que uma das formas que ele mais repete é a do ovo, seja como um símbolo do nascimento ou do surgimento do mal, o ovo da serpente.

Uma seção mais documental apresenta o conceito de território ao resgatar a atuação pública do artista. Traz, por exemplo, as ilustrações que ele fez para a revolucionária cartilha de alfabetização de Paulo Freire. Ou ainda sua colaboração com Lina Bo Bardi numa adaptação cinematográfica de "O Auto da Compadecida" de 1969 —ele produziu os figurinos do filme e ela, os cenários.

Já a natureza surge num desfile de criaturas no centro da mostra. Ali estão um pássaro com pés humanos, um lagarto com casco de tartaruga, jacarés que parecem ter engolido mesinhas de centro inteiras e agora reproduzem suas formas, como as sucuris ao devorar suas vítimas. As pinturas da sua série amazônica, dos anos 1960 e 1970, são vistas em conjunto pela primeira vez em anos, um feito e tanto dado que várias delas estavam em coleções particulares.

A série, aliás, talvez funcione como uma síntese da obra de Brennand. Rebouças conta que o artista nunca esteve na Amazônia. Sua mata é constituída em grande parte por animais e plantas que o cercavam ali mesmo, na oficina. "Ele vai inventar uma floresta a partir desse coração na Várzea, assim como inventou esses animais", diz ela.

É um universo profundamente particular, que, segundo González, não encontra paralelos na arte latino-americana do mesmo período.

O dado ajuda a explicar a relativa falta de circulação de trabalhos do artista no eixo Rio-São Paulo. Alie-se a isso um certo pendor para o isolamento de Brennand, que, ao optar por comercializar ladrilhos e outros objetos utilitários de cerâmica produzidos na oficina, pôde não só manter sua independência em relação ao mercado de arte como colecionar a própria obra.

É esse isolamento que o instituto agora busca romper. Em parte, com a venda de cerca de 300 obras selecionadas pelo próprio artista para esse fim para a criação de um fundo patrimonial.

Sócio da galeria escolhida para representar o espólio, a Bergamin e Gomide, Thiago Gomide descreve a ausência de Brennand no mercado como uma faca de dois gumes —se de um lado, isso ajudava a alimentar um certo mito em torno do artista, de outro tornava muito difícil precificar a sua obra, afastando compradores em potencial.

Desde o anúncio da representação, em fevereiro, a Bergamin e Gomide já levou o artista para duas feiras internacionais, emprestou obras suas para mostras coletivas e, agora, negocia possíveis aquisições com um museu estrangeiro. No final do mês, inaugura uma exposição do artista na sede da galeria, nos Jardins.

O maior empenho para traçar uma ponte entre o parque de esculturas à beira do rio Capibaribe e o resto do mundo vem da própria programação, no entanto. Além das residências e de exposições já citadas, a ideia é convocar cada vez mais artistas, iniciantes e estabelecidos, para conversarem com a obra de Brennand.

Artistas contemporâneos aclamados como Mauro Restiffe e Sofia Borges, por exemplo, foram convidados para produzir ensaios fotográficos a partir do seu trabalho para um livro comemorativo —são deles as imagens que ilustram este texto.

São vozes que adicionam novas camadas de leitura ao imaginário tão particular de Brennand, situando-o no presente. "Brennand fez o que poderia ter feito como artista do seu tempo", diz Rebouças. "Mas eu posso pegar esse trabalho e dizer: como esse trabalho se projeta? Como podemos trabalhar a partir dele?"​

Devolver a Terra à Pedra que Era: 50 anos

  • Quando Ter. a dom., de 10h às 18h. Abertura domingo (21). Até 12/10/2022
  • Onde Oficina Brennand, r. Diogo de Vasconcelos, s/n, Várzea, Recife
  • Preço R$ 30

Francisco Brennand: Um Primitivo entre os Modernos

  • Quando Seg. à sex., de 10h às 19h. Sáb., de 10h às 15h. Abertura 27/11. Até 29/1/2022
  • Onde Bergamin e Gomide, al. Ministro Rocha Azevedo, 1052, Jardins, São Paulo
  • Preço Grátis
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