Pinacoteca abre 'A Máquina do Mundo', primeira grande exposição desde a pandemia

As 250 obras da mostra vão do deslumbre com o progresso à crítica social e ambiental, dos parafusos à radioatividade

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São Paulo

A ideia de que o cosmos fosse controlado por um mecanismo externo e superior à existência humana —e que, por conseguinte, esse mecanismo pudesse ser desvendado e compreendido— é um tópico literário nascido na Antiguidade e vez e outra retomado.

Vinda desde Dante e Camões, essa "máquina do mundo" que chega a Carlos Drummond de Andrade e Haroldo de Campos ganha nova compreensão na exposição que a Pinacoteca de São Paulo inaugura agora.

Em "A Máquina do Mundo: Arte e Indústria no Brasil 1901 - 2021", cerca de 250 obras de mais de cem nomes, vindas de diferentes acervos, se estruturam em três eixos para dar conta da relação entre arte e indústria, afirma o curador José Augusto Ribeiro.

A figuração do operário; a apropriação artística de técnicas e materiais industriais; e, por fim, as questões sociais derivadas de um olhar crítico sobre a industrialização conformam o tripé a partir do qual as peças foram selecionadas.

obra de arte
'Massificação (João)', obra de Carlos Zilio de 1966 exibida na mostra 'A Máquina do Mundo', na Pinacoteca de São Paulo - Pedro Oswaldo Cruz/Divulgação

Como preâmbulo às sete salas da exposição, o registro em vídeo da performance "Máquinas do Mundo", de Laura Vinci, evoca "A Máquina do Mundo", um dos maiores poemas de Drummond.

Com relação ao conceito original, diz Ribeiro, a exposição faz "um empréstimo e um desvio". Não se trata tanto de pensar no engenho que comanda os corpos celestes, mas nos produtos que regem nosso cotidiano, diz o curador.

Nesse sentido, a exposição se aproxima mais dos versos drummondianos, que falam sobre "o que nas oficinas se elabora", "os recursos da terra dominados" e "tudo o que define o ser terrestre".

Ao passar pela porta, o visitante é recebido não na primeira, mas na segunda sala, pelos versos de "Portões Abrem", de Ronaldo Azeredo. O poema de 1961 enuncia tensões do mundo fabril —passeata, pacto, reajuste, paralisação, patrões— na voz do autor, vinda de um pendente no teto.

Na parede do fundo, um trabalho inédito de Artur Lescher, "Riorevir", exibe sua lustrosa superfície pintada em tinta automotiva, em diálogo com "Pendurador", de Ana Maria Tavares, peça de aço carbono negro que remete a ganchos de fábrica ou cabides.

Caminhando para a esquerda, a primeira sala inicia o percurso mais ou menos cronológico que a mostra seguirá, com espaço para alguns vaivéns temporais.

Nela estão diferentes representações do trabalhador, entendido a partir dos anos 1930 como "agente de transformação social", caso do esboço para o quadro "Operários", de Tarsila do Amaral, ou de gravuras de Lívio Abramo.

Vemos ainda Santos Dumont em uma animada, ainda que muda, conversa com Charles Rolls sobre seus balões dirigíveis, em Londres. Era 1901, e Rolls ainda não havia se unido a Royce na famosa fábrica de automóveis, mas já era um aeronauta. As cenas são do curta "Santoscópio=Dumontagem", de Carlos Adriano, elaborado a partir de 1.339 cartões fotográficos que o cineasta encontrou no Museu Paulista, restaurou e digitalizou.

A apropriação de materiais vindos da indústria —borracha, acrílico, metal— está na terceira sala, em obras de artistas do grupo Ruptura, de São Paulo, ou dos neoconcretos do Rio de Janeiro.

São trabalhos também que, como lembra o curador, "apagam o gesto do artista" e que sugerem "imagens dinâmicas, formas que parecem em movimento", como a escultura "Três Pontos (Estudo)", de Franz Weissmann, em que se entrecruzam formas geométricas básicas —o triângulo, o círculo e o quadrado.

O viés político marca a sala quatro, em que dois documentários —"Libertários", de Lauro Escorel, e "Chapeleiros", de Adrian Cooper— ​se alternam, trazendo para a exposição o movimento sindical.

O deslumbre e o horror também se opõem ali. Numa das paredes, fotografias de Hans Gunther Flieg, que elevou imagens de parafusos, máquinas e chaminés ao grau da arte. Em outra, o indizível dos desastres de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, segundo Mabe Bethônico, na instalação "Speaking of Mud", ou falando de lama. Nela, páginas de jornais são recortadas, deixando o vazio das palavras a contornar as imagens dos rompimentos de barragens da Vale.

A alienação e a serialização aparecem em trabalhos na quinta sala, como os de Hudinilson Júnior, em que o corpo nu do artista se reproduz em fotocópias, ou no "Self-Portrait" feito à máquina de escrever por Eduardo Kac.

Trabalhos de Carlos Zilio anteriores à adesão do artista à luta armada estão entre os destaques da sala, como "Lute (Marmita)", em que um rosto aparece no lugar do alimento do operário, e "Massificação (João)", no qual o nome próprio, diferenciado por números, é repetido em letras de estêncil ao lado de um relógio de ponto.

A partir daí, as possibilidades de desenvolvimento e progresso cedem lugar a certa "inquietação com a superabundância", traduzida em cores vivas na sexta e penúltima sala.

Enquanto Lotus Lobo recupera matrizes de rótulos de uma litografia decadente de Belo Horizonte e Marco Paulo Rolla lança um "olhar irônico sobre o bem-estar prometido pelos eletrodomésticos", Sergio Romagnolo fala de certo cansaço do produto industrial, com seu "Fusca Grande" de plástico derretido.

O "sono rancoroso dos minérios" de Drummond se acende nos trabalhos da última sala, em que comparecem os riscos ambientais e a ameaça nuclear.

Trabalhos que lembram iluminuras apocalípticas, de Alex Cerveny, dividem o espaço com uma série de fotos e pinturas de Romy Pocztaruk sobre a tentativa brasileira de desenvolver uma bomba atômica.

Fechando o ciclo, desenhos de Siron Franco rememoram a tragédia radiológica de Goiânia, em que moradores entraram inadvertidamente em contato com o césio-137 de um aparelho descartado erroneamente.

O brilho do isótopo radioativo que em 1987 atraiu e contaminou os moradores salta em traços sintéticos de tinta prata sobre cartão preto. O clarão que, ao contrário daquele dos versos de Drummond, é "maior que o tolerável", faz com que o visitante saia da exposição, como o poeta, caminhando "vagaroso, de mãos pensas".

A Máquina do Mundo: Arte e indústria no Brasil 1901 - 2021

  • Quando Abertura no sábado (6). De qua. a seg., das 10h às 18h. Até 22.fev.22
  • Onde Pina Luz, praça da Luz, 2
  • Preço De R$ 10 a R$ 20; aos sábados, grátis (ingressos com horário marcado e vendas pelo site pinacoteca.org.br/ingressos-e-releases/)
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