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Poemas de 'Vão' registram romances e caos do cotidiano nos trens paulistanos

Obra de Jéssica Moreira busca preservar as memórias do dia a dia do trabalhador da periferia da cidade

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São Paulo

Vidas inteiras passam pelos trilhos dos trens da capital de São Paulo. Todos os dias, pessoas vão à escola, à faculdade, ao trabalho e circulam pelos vagões da CPTM, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.

Jéssica Moreira, escritora e cofundadora do Nós, Mulheres da Periferia, site jornalístico criado e administrado por mulheres negras periféricas, observou por anos esse universo cheio e muitas vezes caótico. O resultado dessa análise é o livro "Vão: Trens, Marretas e Outras Histórias", lançado pela editora Patuá.

Com poemas e crônicas curtos —ótimos para serem lidos em uma viagem no transporte público—, a obra de Moreira traça linhas que levam o leitor para lugares de reflexão. Ele ainda é apresentado a personagens, como marreteiros e o shopping trem —ambulantes, que vendem produtos nos vagões—, interessantes do cotidiano paulista, especialmente para quem não está acostumado a se locomover pelas ferrovias diariamente.

A jornada de Moreira, de permanecer atenta e observar esse espaço que vive em constante movimento, começou em 2009, depois de uma frustração no vestibular da Universidade de São Paulo e de ter iniciado um curso popular de teatro na periferia de Perus, bairro da região noroeste da cidade.

"Eu fazia vocacional de direção teatral e o exercício era andar de trem e anotar tudo o que eu via. Na época eu pensei: ‘como não fiz isso antes?’. O tempo de cerca de duas horas indo e voltando das estações Perus e Luz passou muito mais rápido", afirma a escritora.

Cria de Perus, o marco zero de suas publicações foi em 2012, quando a escritora começou a postar em suas redes sociais as anotações feitas nos vagões dos trens, o que gerou elogios, curtidas e mais histórias feitas nas viagens pelas linhas férreas.

"A partir da reação das pessoas, com comentários nas publicações, eu via do que elas gostavam, qual tipo de narrativa era interessante, e é nesse momento que nasce 'Vão'", explica a escritora.

"Eu busquei colocar nos versos do livro o cotidiano real de dentro dos trens --com pessoas às vezes comendo com marmitas na mão, outras estudando com cadernos e livros, paqueras, vendedores cheios de sacolas e pedintes. Gosto de pensar na metáfora do dia a dia de quem usa o trem, a estação final é também a primeira", afirma Moreira.

Segundo a CPTM, cerca de 867 milhões de viagens foram feitas em suas vias ao longo de 2019, número recorde até o momento. Com isso, nunca se viveu tanto nos vagões. A obra de Moreira reflete sobre esse cotidiano duro, de quem passa boa parte do tempo nos trens.

"O trabalhador vive cansado, e os trens se tornam um reflexo disso. Procurei trazer nos meus versos um pouco desse cansaço também."

Vale lembrar que mesmo nos momentos mais críticos da pandemia de Covid, em 2020, os trens e ônibus da capital exibiram cenas de grandes aglomerações, gerando insegurança aos passageiros.

Moreira, que começou a escrever aos seis anos, diz que o fato de ser uma mulher negra e de periferia mais ajudou do que atrapalhou sua jornada na escrita.

"Na quebrada a gente é rodeado de referências, principalmente na música. Sempre ouvi muito rap, por exemplo, por causa do meu irmão. RZO, que é um grupo de rap fundado na região oeste, em seu disco de 1999, tem uma música chamada 'O Trem', em que eles denunciam e relatam o cotidiano que muitas vezes pode ser violento nos trilhos", afirma a escritora.

Seu livro, dividido em quatro partes —"Cuidado com o Vão entre o Trem e a Plataforma", "Shopping Trem", "Amor de Trem é Passageiro" e "Última Estação"— é na verdade um estudo de observação de pelo menos dez anos. A autora diz que durante um tempo, entre 2012 até a publicação, precisou parar algumas vezes com o projeto por conta do excesso de trabalho e da insegurança.

"Em 2020 eu me dediquei mais à poesia, mas mesmo assim me bateu uma insegurança com o meu trabalho. Resolvi pausar o projeto mais uma vez durante a pandemia. Mas, logo depois, com muita análise e ajuda de amigos, esse livro veio ao mundo", afirma.

Ler "Vão: Trens, Marretas e Outras Histórias" é uma oportunidade de conhecer em detalhes cenários e eventos que em muitos casos passam despercebidos por quem ocupa diariamente as plataformas ou para quem nunca esteve em uma. "É uma forma de repassar nossa memória, deixá-la registrada para o futuro, não a apagar ou esquecer, como sempre foi feito com os negros e periféricos no Brasil", conclui a escritora.

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