Quem é Murica, rapper que tem Hélio Oiticica e a marginália como inspiração

Influenciado pela tropicália e pela poesia nacional, artista de 21 anos cruza hip-hop e geleia geral em bossa rap

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O rapper Murica vestindo o parangolé sob o Elevado Costa e Silva em São Paulo Eduardo Knapp/Folhapress

Brasília

Na varanda de seu apartamento, dando baforadas contra o dia nublado de Taguatinga, o rapper Murica se questiona por onde andou até os 16 anos. Nos estudos para ingressar na Universidade de Brasília, surgiu um mundo estranho ao de sua casa em Brazlândia, na periferia do Distrito Federal, onde vivia com seu pai, vigilante noturno, e seu irmão.

Os livros apresentavam os artistas Athos Bulcão e Hélio Oiticica, o escritor Graciliano Ramos, o músico Jards Macalé e o tropicalismo de Gilberto Gil e Caetano Veloso. O conceito da tropicália despertou seu fascínio. Para saber o que era o "Parangolé", ele buscou no Google o nome de Oiticica e encontrou a frase da bandeira que estampou o corpo do bandido Cara de Cavalo –"seja marginal, seja herói". Isso, sim, soou familiar. Forçando a memória, lembrou que ela aparecera numa rima do carioca MC Funkero, em "Espírito Vândalo".

O rapper Murica, 21, vestindo um parangolé em rua no bairro de Santa Cecilia, no centro de São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Nesse atraso, havia toda a distância social de Brasília das cidades-satélites. "Fui me aproximando de jovens do Plano Piloto e percebi que eles sabiam dessas coisas há mais tempo que eu. Já era normal. Eu tinha uma consciência mais clara das classes sociais, do que era negado, e aí esse foi o definitivo. Caramba, onde é que estava que não veio pra mim?", diz Murica, hoje com 21 anos, que se apresenta no Presidenta Bar, em São Paulo, neste sábado.

A estética tropicalista transformou sua visão do hip-hop e influenciou seu EP "O Que Restou da Marginália", lançado neste ano e disponível nas plataformas de streaming. No lance visual, ele fez uma aproximação inusitada entre o rap e Oiticica, canibalizando o "Parangolé" de número um, de 1964, por reconhecer a obra como uma espécie de "roupa de super-herói brasileiro". Com base em fotografias de performances dos anos 1960, pediu ao seu amigo Bernardo Vieira para costurar uma cópia em vermelho, amarelo e laranja.

Ele vai ao quarto e retorna com seu "neoparangolé". Na varanda, abre a capa, como um Batman, e enche de cores a paisagem cinza de Taguatinga. "O que me encantou no 'Parangolé' é aquilo só fazer sentido se alguém entrar em movimento, se alguém vestir a parada e der sentido."

"O Que Restou da Marginália" reflete sua busca por referências culturais brasileiras. "Eu pensei nesse nome porque tem um movimento de endeusamento da cultura estadounidense, que foi o berço do hip-hop. Me parece mais verdadeiro fazer uma coisa sul-americana, uma coisa brasileira, que tenha samba, capoeira."

"Nós somos o que restou da marginália", ele afirma cheio de chinfra, ao listar as participações de Daniel Shadow, Iuri Rio Branco, Victor Xamã, Vietnã, MK e Davzera. "É uma tiração de onda. O rap ensina essa autoestima, essa autoafirmação de que fumo um baseado melhor que o seu, rimo melhor que você."

"O Silêncio e a Batucada", introdução do disco, sampleia o rapper brasiliense Gog e os poetas Clóvis Campelo —lido pelo ator Antônio Abujamra—, Paulo Leminski e Waly Salomão. "Kung Fu de Rua" remete à malícia das ruas e ao culto a filmes de samurais entre os MCs. Ele faz questão de mencionar as influências de Criolo e do grupo de hip-hop de Nova York Wu-Tang-Clan. "Guerrilha Urbana" e "O Fino da Bossa" confirmam suas fontes de rimas impuras. No território das citações incomuns, não falta Maria Bethânia.

O produtor MK conta como planejou junto com Murica a visita à tropicália. "A primeira que fizemos foi ‘O Fino da Bossa’, com Davzera, da Bahia. Tentamos um som de textura hip-hop, mas com a gente ele queria fazer uma bossa rap. Fizemos conexões com os que caminham na mesma reta no rap brasileiro, sem querer copiar os gringos. Vietnã de São Paulo, Daniel Shadow do Rio, Xamã de Manaus, Davzera da Bahia. Juntamos a cobra coral do Xamã e a nossa cascavel", diz ele.

"Eu sigo o BPM, não sei meu CPF/ Pra longe do supérfluo eu sinto o vento leve/ Às vezes nem tudo é cérebro, requer mais sentimento/ Requer mais entendimento ou sei lá o que essa puta vida pede", canta Murica em "Coral e Cascavel", dividida com Xamã.

O rapper tem cabelos espetados, bigode fino e olhos castanhos elétricos. Nascido Murillo Fellipe, mas apelidado de Murica na infância, frequenta desde os 15 anos as batalhas da rima do Distrito Federal. De cedo, assumiu o nome de guerra Murica Sujão, graças a suas rimas sujas nas batalhas do Cinzeiro, em Brazlândia, da praça do Relógio, em Taguatinga, e do Museu Nacional da República, em Brasília.

Em 2017, ele criou o grupo Puco Suco com Peres, também vocalista, e o produtor musical MK. Os três processaram as influências de Emicida, Criolo, Racionais, samba e tropicalismo.

Murica foi iniciado no hip-hop pelo próprio pai, Marcelo, seu grande estimulador, que assumiu a guarda dos filhos após a separação. Aos 14 anos, depois de fazer uma redação sobre a Revolução Francesa em forma de rap, o garoto entrou pela primeira vez em um estúdio acompanhado pelo pai. Murica estudou seis meses de ciências sociais na Universidade de Brasília e logo abandonou o curso.

Os nomes de seus primeiros álbuns, "Fome", de 2019, e "Sede", de 2020, estão tatuados na maçã de seu rosto e no pescoço. "Cascavel", sua primeira música produzida, revela crueza poética. "Vai, trap é meu pinto/ Apto como cacto/ Rápido tipo crítico/ Ácido meio cítrico."

No Spotify, "Jaqueta Jeans", seu rap mais popular, do disco "Fome", já conta com mais de 1 milhão de reproduções –o mesmo número atingido pelo novo EP. "A filosofia me instigou e eu vim buscar/ A verdade é de fritar/ Amizade é terapia pra não surtar/ O suco misturou com mate e hoje beberemos chá."

Em sua estante há livros de Leminski e Baudelaire, "Verdade Tropical", de Caetano, e "A Descoberta do Mundo", de Clarice Lispector. De quem é o exemplar de Clarice? "É de Murica. Eu só gosto do que é real. ‘Cosmos’, de Carl Sagan, é meu. Os romances são dele", adverte Gabrielle, sua mulher. "Os romances são reais", ele reage.

"Conheci uma produção que aconteceu numa época perto da tropicália, a dos poetas marginais, com uma linguagem falada, livre, à margem das regras, do que é esperado da poesia. Percebi a ponte com o rap. É muito parecido"

Noutra tarde, na Torre de TV de Brasília, Murica tirou da mochila "Fundamentos do Kaos", de Jorge Mautner, e o entregou ao poeta Ian Viana, seu amigo. Tinha em mãos um exemplar ensebado do Novo Testamento. A curiosidade pela Bíblia cresceu depois de sentir uma quentura no peito, algo subindo de baixo pra cima. É uma manifestação do Espírito Santo, pensou.

Em casa, ele desfaz, sorrindo, a falsa impressão de que pode virar um rapper evangélico. "Não. Vou virar um rapper que fale de algumas ideias que cooperem com o Evangelho. Estou falando de fé." A certo ponto da tarde, o filho de Murica caminha em nossa direção, tropegamente, e espreme os olhos claros na porta de vidro. Seu nome é Caetano.

Kalamidade convida Murica

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