Riachão, ícone do samba da Bahia, ganha documentário no dia em que faria cem anos

Músico morto em 2020 registrou dia a dia de Salvador em suas composições, regravadas por Caetano, Gil e Cássia Eller

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Salvador

Boina, óculos escuros, toalha ao redor do pescoço, devidamente ornado por correntes, dedos cheios de anéis, calça e sapatos brancos. Bigodinho chapliniano, pose de malandro e alegria de criança. A imagem carismática do inquieto e dançante Clementino Rodrigues, o sambista Riachão, era inconfundível nas ruas de Salvador.

Morto em março do ano passado, aos 98 anos, Riachão completaria cem anos nesse domingo (14). Em sua homenagem, uma roda de samba na tradicional Cantina da Lua, no Pelourinho, celebrará a data do centenário. No mesmo evento, será lançado o documentário "Riachão, O Retrato Fiel da Bahia", dirigido por Carolina Canguçu.

Muitos dos sambas de Riachão, regravados por nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Cássia Eller e por seu amigo Jackson do Pandeiro, eram crônicas do dia a dia da cidade. É o caso de "Baleia da Sé", sobre o burburinho de uma baleia morta, exposta em um caminhão na praça da Sé. Ou dos versos que fez após a visita da Rainha Elizabeth 2ª a Salvador, em 1968. "Sei que você também viu em plena avenida Sete/ Foi aplaudida no Palácio da Aclamação, foi a maior emoção, a Rainha Elizabeth".

Na juventude, Riachão viu um pedaço de revista no chão com a frase "se o Rio não escrever, a Bahia não canta". Incomodado, começou a compor no dia seguinte. Pelas suas contas, fez mais de 500 composições ao longo da carreira.

Mas só teve a oportunidade de gravar seis discos. Em 2000, depois de 27 anos sem lançar um álbum de inéditas, gravou "Humanenochum" — título que, segundo Riachão, significa "o homem negro humano que adora e não fala mal da mulher". O disco chegou às plataformas de streaming neste fim de semana.

"Uma vez eu fui com ele na fila do banco e ele começou a cantar. Aí eu disse: ‘essa tem que entrar no disco’", lembra Paquito, produtor de "Humanenochum" ao lado de J. Velloso. A música era "Vá Morar com o Diabo", que em 2001 foi regravada por Cássia Eller. Os dois chegaram a se apresentar juntos. O disco e a canção foram indicados ao Grammy Latino em 2002.

Nos anos 1950, quem também ficou fã da canção foi a então primeira-dama baiana, Tsylla Balbino, que pedia a Riachão para cantar "a nossa música" no palácio do governo estadual.

"Riachão cantava em ônibus, em avião. Ele era artista em tempo integral", diz Paquito. "Como ele não tocava instrumentos, a maneira que tinha de memorizar as canções era repeti-las intensamente". Certa vez, lembra Paquito, ao ver Riachão em ação, o compositor Roberto Mendes disse que "ele não é músico, ele é música".

Parte do processo de gravação de "Humanenochum" foi mostrado no documentário "Samba Riachão", de Jorge Alfredo, em 2001, vencedor do Festival de Brasília daquele ano. Mas a experiência de Riachão no cinema vinha de muito antes. Em 1961, participou do filme "A Grande Feira", de Roberto Pires, sucesso de bilheteria em Salvador.

Riachão
O sambista Riachão em um show de comemoração dos 95 anos, em 2017 - Daniela Carvalho/Divulgação

Maior sucesso da carreira de Riachão, a música "Cada Macaco no Seu Galho" surgiu depois do término de uma sociedade numa barraca que ele tinha com um amigo. Em 1972, após a volta do exílio, Gil e Caetano a gravaram num compacto.

"Eu estou cantando esse samba e daqui a pouco eu estou vendo a equipe suspendendo o dedo [polegar]. Daqui a pouco, fofa, eu só vi foi um grito deles todos: ‘é essa, é essa’, e todo mundo com o dedo pra cima", contou Riachão, numa entrevista à TV, sobre quando apresentou a música a Gil e Caetano.

Em 2016, em um show no carnaval do Pelourinho, Riachão se mostrava preocupado com como o público voltaria para casa tarde da noite. "Vocês para mim são Jesus Cristo", elogiava.

"Essa alegria desmedida de buscar agradar o público de toda forma, isso é coisa de um cantor de trio. Na verdade, de um animador", observa Paquito.

Morador mais famoso do bairro do Garcia, onde nasceu e morreu, Riachão foi por décadas estrela dos desfiles de carnaval do bloco "Mudança do Garcia", conhecido pelos protestos e pelo tom sarcástico.

"Um momento marcante foi quando a gente saiu do Largo do Garcia, passamos na frente da casa dele e ele entrou no trio. Ele foi até o Campo Grande cantando os sambas dele. Nós começamos às 13h e fomos até as 20h, com ele em cima do trio querendo cantar mais", conta o neto Milton Júnior, que foi produtor do avô nos últimos anos.

Em "Somente Ela", Riachão homenageou Dalvinha, sua segunda esposa. Em 2008, Dalva e dois de seus filhos com Riachão morreram em um acidente automobilístico no Rio de Janeiro.

A escolha do nome artístico "Riachão" veio por causa da palavra que ele usava na mocidade como sinônimo de valentia. Em 2011, quando completou 90 anos, Riachão compôs o samba "90", em que cantava os versos "90 anos, parabéns/ Se Deus quiser, vou chegar a cem".

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