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'Risca Faca' busca fazer a poesia possível no Brasil de Bolsonaro

Novo livro de Ademir Assunção lê eventos políticos recentes a partir da história da arte poética

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Luisa Destri

Doutora em literatura brasileira pela USP e coautora de "Eu e Não Outra - A Vida Intensa de Hilda Hilst"

Risca Faca

  • Preço R$60,00 (132 págs.)
  • Autor Ademir Assunção
  • Editora Demônio Negro

No novo livro de Ademir Assunção, poeta que venceu o Jabuti em 2013 com "A Voz do Ventríloquo", o cruzamento de registros está anunciado desde o título, "Risca Faca" —mais que localizar a poesia no ambiente beat com frequência associado à produção do autor, a gíria, de origem supostamente nordestina, refere-se ao bar como um lugar de pouca pretensão intelectual e muita confusão.

O lado irônico ou, no mínimo, bem-humorado da associação é ressaltado pela ilustração da capa, que simula um rasgo provocado justamente por uma faca, dando um ar um tanto tosco à abertura do livro.

O escritor e jornalista Ademir Assunção - Divulgação

A perspectiva, que poderia ser vista como pouco qualificada para a poesia, já que esse bar pouco traz da boêmia idealizada como fonte de lirismo, organiza, porém, uma série de releituras da tradição poética, quase sempre identificadas, como acontece nos poemas intitulados "Arthur Rimbaud", "Dante Alighieri" e "Octavio Paz", que integram a seção "Livro de Retratos".

Além de mapear o universo de preferências do poeta e de amparar a autoafirmação do valor da poesia, a constelação de autores e outras referências, como os músicos Cartola, Chet Baker e Itamar Assumpção, orienta a reflexão sobre o lugar que hoje pode ter o ato de produzir poemas.

Um dos exemplos mais evidentes é o do soneto que atualiza versos bastante conhecidos de Gregório de Matos: "Triste Brasil! Ó quão estropiado/ Estás e estou como papel cagado!/ Pobre te vejo a ti, que terra mais zoada,/ Até Camões virou motivo de piada".

A condição decadente do poeta e da poesia, um dos temas mais caros à literatura, especialmente na modernidade, aqui se torna um dado básico de contexto, porque diretamente atribuída aos eventos políticos recentes, como exemplifica uma estrofe seguinte do mesmo poema: "Destes para Moro um cargo excelente/ Pela operação golpista, como és burro/ E como aceitas bem o ferro em teu roscofe".

A vinculação da poesia ao tempo presente é uma característica forte do livro, que daí obtém resultados diversos. Na seção "Fábulas Contemporâneas", por exemplo, os poemas em prosa se dedicam a pensar aspectos como o noticiário, a guerra, a publicidade: a crítica social, a ironia e a aproximação com as narrativas elementares do título nem sempre são suficientes para evitar o óbvio ou afastar a tentação de explicar o que se quer dizer. Ainda assim, alguns recursos surpreendem, como os parênteses invertidos, o corte no discurso, mesmo em prosa, e, sobretudo, os emoticons de "Fábula do Hospício".

Mas a composição que melhor sintetiza a proposta de "Risca Faca" é, provavelmente, "Um Idiota no Meio do Caminho": "não havia uma pedra no meio do caminho/ havia um idiota completo com seu olor de ódio/ um idiota completo que relinchava/ — sem a elegância dos cavalos". Não é preciso ser crítico literário para reconhecer quem é esse "führerzinho mal ajambrado em talho tosco" que ocupa o lugar da pedra drummondiana.

A releitura faz lembrar que a poesia sempre encontrou obstáculos, e que esses obstáculos podem ser determinantes para o tipo e a qualidade da resposta que se pode oferecer. Nesse sentido, "risca faca", como uma imagem que atravessa o livro, aponta para ainda outra forma de rebaixamento: ao retomar João Cabral de Melo Neto, o poeta das facas, em "Parapsicologia da Decomposição", Assunção parece rebaixar as suas armas ao nível do inimigo bolsonarista.

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