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Shakespeare inspira Newton Moreno em 'Sueño', peça que evoca fedor das ditaduras

Diretor conhecido por abordar o feminino e o Nordeste faz manifesto sobre país que queremos ser

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cena de peça

Cena da peça 'Sueño', dirigida pro Newton Moreno João Caldas Filho/Divulgação

Guilherme Henrique
São Paulo

Newton Moreno conversa com o repórter quando um dos seus auxiliares entra no camarim. O dramaturgo se levanta da cadeira ao ser informado que um ator chileno, exilado durante a ditadura de Augusto Pinochet, havia acompanhado a sessão de "Sueño" no sábado passado. "Preciso falar com ele. Você me desculpa?", perguntou o diretor antes de encerrar educadamente a entrevista.

Caminho livre para o dramaturgo percorrer um corredor envidraçado, cuja saída termina na área externa do teatro João Caetano, na zona sul da capital paulista. É ali, na grama, rodeado por árvores e com um público limitado a 30 pessoas, que o pernambucano está encenando o que ele define como um "desabafo". "Estou me utilizando do teatro para discutir a letargia latino-americana", afirmou.

A pressa para encontrar o interlocutor chileno se justifica. "Sueño" reconstrói a saga de uma trupe teatral desmantelada após o golpe militar de 1973 e a deposição do então presidente Salvador Allende. O evento interrompe os planos da companhia na remontagem de "Sonho de uma Noite de Verão", de William Shakespeare. Envolvidos com a militância política, o diretor Vine e sua mulher, a atriz Laura, que está grávida, decidem fugir do país.

No exílio, Vine sonha com o espetáculo que desejava encenar. No palco, o elenco formado por nomes como Leopoldo Pacheco e Denise Weinberg recriam a fábula de lendas e mitos shakespearianos a partir dos delírios do diretor, interpretado por José Roberto Jardim. A "metapeça", como define Newton Moreno, é também sobre a necessidade de manter vivo o sonho artístico.

"Não é apenas sobre o Chile. Existe a ficção, mas estamos falando do Brasil, da repressão e do sucateamento que nos atinge. Falta recurso, apoio e tempo para criar. Falta ar. Estamos cada vez mais asfixiados", ele diz.

Radicado em São Paulo desde os anos 1990, Newton Moreno ganhou relevância na cena teatral a partir da década seguinte, com peças como "Agreste", de 2004, e "As Centenárias", de 2007, esta última com Andrea Beltrão e Marieta Severo. Depois, vieram "Maria do Caritó" em 2012, com Lilia Cabral, e "As Cangaceiras – Guerreiras do Sertão", de 2019.

Nesse período, empilhou prêmios APCA, da Associação Paulista de Críticos de Arte, e Shell de teatro, se tornando figura carimbada na lista de dramaturgos e diretores que ajudaram a renovar a estética nacional.

Seus trabalhos investigam o universo feminino, dialogando, em alguns casos, com aspectos da sua origem nordestina. A força da mulher também aparece em "Sueño", com a ativista Laura peitando seus algozes para defender a filha recém-nascida. Mas o universo latino-americano é novidade em sua obra.

"Há uma quebra em relação ao que já fiz", afirma. "Ainda acho que a forma de narrar pode ser mais latinizada. Ao mesmo tempo, não dava para romper com tudo, porque precisava manter aspectos do Shakespeare. Esse foi o primeiro sonho de outros que virão nessa aproximação com a América Latina", complementa.

O interesse pelos países vizinhos começou desvinculado do trabalho. "Parei de gastar dinheiro indo à Europa", brinca. Desde 2017, ele percorreu Uruguai, Argentina, Chile e Peru. Visitou o Museu da História e dos Direitos Humanos, em Santiago, e também o Espacio Memoria, em Buenos Aires.

Em paralelo, o diretor aprofundou a pesquisa até então incipiente sobre a Operação Condor, ação militar coordenada entre países da região na década de 1970, com apoio dos Estados Unidos, para troca de informações e monitoramento de opositores.

"Vi depoimentos de famílias destroçadas pelas ditaduras. Mães que não conheceram seus filhos, avós que não conviveram com netos. O horror que vai se esparramando pela sociedade com ecos irreversíveis." Isso aparece em "Sueño", quando o diretor exilado retorna ao Chile no início dos anos 1990 para tentar recuperar a família esfacelada pelos militares.

Além das viagens, Newton Moreno revirou os arquivos da Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes repressivos dos militares brasileiros na ditadura, e releu obras como "As Veias Abertas da América Latina", do uruguaio Eduardo Galeano, e "A Elite do Atraso'', do sociólogo Jessé de Souza. "Houve uma elite chilena exploradora de cobre que lavou as mãos para as atrocidades. A nossa elite também é assim, e é por isso que estamos na merda."

Falar sobre a ditadura militar na América Latina não é novidade e o dramaturgo sabe disso. "Estou mais preocupado com a urgência do tema do que com originalidade", confessa, para em seguida dar alguma materialidade à justificativa.

"Enquanto fazíamos a peça, percebi que jovens ao meu redor não sabiam bem quem era Pinochet, desconheciam práticas de tortura. Falar sobre isso pode ser óbvio, mas é necessário. O fedor da ditadura está no Brasil. Esse trabalho é um manifesto poético-político que nos questiona sobre o país que fomos e aquele que queremos ser."

Sueño

  • Quando De 5/11 até 5/12. Ter. e dom.: às 18h.
  • Onde Teatro Municipal João Caetano - Rua Borges Lagoa, 650, Vila Clementino, zona sul
  • Preço Ingresso gratuito, retirada uma hora antes da sessão
  • Elenco Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco e Paulo de Pontes
  • Direção Newton Moreno
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