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Solidão dos jovens negros domina livros de grandes promessas da literatura

Raven Leilani e Brandon Taylor discutem o que é ser o único negro em ambientes privilegiados

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'Pia e Salamandra', tela de 2013, de Ana Elisa Egreja

'Pia e Salamandra', tela de 2013, de Ana Elisa Egreja, que estampa a capa de 'Mundo Real' Divulgação

São Paulo

Wallace é um universitário de 20 e poucos anos que cursa pós-graduação em bioquímica no sul dos Estados Unidos. É o único negro na sua turma seleta de bolsistas. Tomado por angústias com traumas familiares e com seu futuro profissional, não encontra quem o entenda de verdade.

Edie é uma jovem negra com um cargo desprestigiado numa editora, onde se sente um mero "token" de diversidade. Sua única relação mais consistente é com um homem casado, branco e rico, com quem se envolve de maneira cada vez mais intensa e alarmante.

Os dois protagonizam um par de lançamentos entre os mais elogiados de uma nova geração da literatura americana. Tanto Brandon Taylor, que criou Wallace em "Mundo Real", quanto Raven Leilani, que põe Edie no centro de "Luxúria", são autores negros recém-entrados nos 30 anos que querem discutir como a experiência negra em ambientes privilegiados pode ser profundamente solitária.

"Eu tinha em mente falar de uma solidão muito particular", diz Taylor. "Meu interesse era explorar uma pessoa que viveu a vida toda com barreiras de defesa muito intensas, mas, no processo de revisão do livro, notei que algumas partes não soavam verdadeiras porque não capturavam a dimensão racial da experiência de Wallace."

Encontramos o personagem, no início do livro, num momento conturbado de luto pelo pai. O turbilhão sentimental de um processo como esse, complicado por natureza, se agrava quando Wallace sente que seus amigos mais próximos, mesmo que ensaiem palavras de conforto, estão menos dispostos a ouvir o que ele tem a dizer do que a falar sobre si mesmos.

"É por isso que Wallace nunca conta nada a ninguém", escreve o autor no romance indicado ao Booker. "Porque as outras pessoas não sabem lidar com as merdas, com a realidade do sentimento dos outros. Elas não sabem o que fazer quando ouvem algo que não se alinha com a sua própria percepção das coisas."

"Tive que voltar para pensar o que era para ele ser uma pessoa negra nesses espaços predominantemente brancos", diz Taylor. "Quando pensei mais a fundo que tinha criado um personagem negro e queer para falar de isolamento, percebi que não estava contando a verdade sobre o porquê de os outros personagens não estarem aí para ele."

Já o isolamento de Edie não é abordado de forma tão direta em "Luxúria", que enlaça temas como o despertar da identidade artística e sexual de uma jovem —mas sua solidão, ainda assim, não deixa de gritar em todas as páginas.

Com uma vida financeira cada vez mais precária e sem qualquer laço familiar que a prenda, a garota desenvolve uma forte dependência afetiva de seu amante, Eric, e da mulher dele, a dominante Rebecca, com quem tem um casamento aberto e uma deslumbrante casa no subúrbio.

A relação mais inesperada —e fascinante— que Edie desenvolve no livro não é com Eric, mas com Rebecca. "É um ponto de partida estranho, duas personagens que existem primeiro como competidoras sexuais e de repente vira uma dinâmica de mãe e filha", comenta Leilani. "Edie perde os pais antes de o livro começar, e podemos ver essa ausência em muitas de suas escolhas. Ela está buscando intimidade —sexual, romântica, mas também familiar."

Em determinado momento, a garota lembra seu passado recente no ambiente da escola. "Nessa fase eu não sabia se gostava de ficar sozinha ou se só suportava aquilo porque não tinha outra opção. Eu não era popular nem impopular. Para despertar admiração ou escárnio, primeiro é preciso ser visto."

São pontos fortes dos livros a miopia dos círculos de Edie e Wallace quanto aos episódios de racismo que ambos sofrem. Está visível em "Luxúria" tantos nos momentos climáticos, como quando a protagonista é alvo de uma batida policial em frente à casa onde mora, e nos mais discretos, como a expectativa silenciosa de Rebecca de que Edie atue como um modelo de referência para Akila, a menina negra de 13 anos adotada pelo casal branco.

Num episódio excruciante, "Mundo Real" comenta que o silêncio é a forma de os amigos brancos de Wallace sobreviverem quando confrontados com o racismo, "porque, se ficarem calados tempo suficiente, então esse momento de leve desconforto passará, se incorporará na paisagem da noite como se nunca tivesse acontecido". "Apenas Wallace se lembrará."

Os dois autores têm trajetórias similares às de seus protagonistas, o que não é incomum em romances de estreia e, nesse caso, levanta uma reflexão pertinente sobre o fazer artístico. Taylor habitou os mesmos laboratórios que Wallace e teve o mesmo ímpeto de furar aquela bolha —quando conseguiu, se tornou um romancista promissor.

Leilani trabalhou em vários dos bicos em que Edie rala para se sustentar. Não só dentro de uma editora, mas entregando delivery de tudo quanto é coisa. Só quando conseguiu uma bolsa para se tornar escritora residente na Universidade de Nova York, pôde se dedicar propriamente a uma literatura que, agora, tem arrebatado leitores.

"A conversa sobre o privilégio na arte é antiga, mas ainda há graus a explorar sobre pessoas que não são brancas e não tiveram acesso a herança", comenta a autora. "Havia momentos em que eu não conseguia equilibrar o trabalho, a vida pessoal e a arte, porque estava exausta. Há pessoas que internalizam isso e acham que arte não é para elas."

Sua personagem passa por uma experiência semelhante —consegue melhorar sua pintura ao morar na silenciosa casa suburbana de seu amante, um ambiente confortável, mas também um pouco corrupto. Mas o que o livro parece comentar é que é preciso aproveitar qualquer brecha possível para se imiscuir em ambientes que, no piloto automático, continuam restritos aos brancos e ricos.

"Há muitas vezes uma escolha que pessoas marginalizadas enfrentam", resume Leilani. "Ganhar a vida ou se tornar totalmente humano."

Luxúria

  • Preço R$ 64,90 (232 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Raven Leilani
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Ana Guadalupe

Mundo Real

  • Preço R$ 74,90 (296 págs.); R$ 49 (ebook)
  • Autoria Brandon Taylor
  • Editora Fósforo
  • Tradução Alexandre Vidal Porto

livros que pensam a solidão negra

'Luxúria' (Companhia das Letras)
Raven Leilani cria uma jovem cuja única relação é com seu amante rico e branco e a mulher dele

'Mundo Real' (Fósforo)
Único negro em seu programa de pós-graduação, Wallace não consegue se abrir com os amigos

'A Outra Garota Negra' (Intrínseca)
O thriller de Zakiya Dalila Harris cria suspense com a relação entre as duas únicas negras de uma editora

'Este Não É o Seu Lar' (Tordesilhas)
A obra de Natasha Brown discute o tokenismo a partir das inseguranças de uma mulher negra bem sucedida

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