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'Vento Vadio', de Antônio Maria, resgata crônicas de lirismo e humor ímpares

Cheia de lábia, obra de cronista e compositor ameniza o vira-latismo de quem só exalta o jornalismo literário americano

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Vento Vadio

  • Preço R$ 89,90 (469 págs.); R$ 54,90 (ebook)
  • Autoria Antônio Maria
  • Editora Todavia

Morrer meia hora depois do instante marcado, para regressar a pequenas alegrias, era só o que pedia o cronista pernambucano Antônio Maria. A antologia "Vento Vadio", organizada por Guilherme Tauil e agora lançada pela Todavia, concede mais de meia hora de eternidade ao "menino grande" da crônica, autor de clássicos do samba-canção, como "Ninguém Me Ama", com Fernando Lobo, e "Manhã de Carnaval", com Luiz Bonfá.

Mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo, também cronista, Tauil reuniu 185 crônicas —132 inéditas em livro— e acolheu o título de um projeto de coletânea esboçado mas jamais concluído por Maria. Em relação às antologias precedentes, bem mais delgadas, o garimpo de "Vento Vadio" apresenta ganhos numerosos e redimensiona a literatura de Maria.

xilogravura mostra planta
Xilogravura de Santídio Pereira de 2016 que estampa a capa de 'Vento Vadio', reunião de crônicas de Antônio Maria recém-lançada pela editora Todavia - Reprodução

Na introdução, Tauil esclarece suas obscuras passagens biográficas em Fortaleza, Recife e Salvador. Um Maria brasileiro, não somente circunscrito à noite carioca, aflora nos textos gastronômicos e nas lembranças de engenhos de Pernambuco e de terreiros de candomblé da Bahia.

Suas vivências no Rio não sugerem uma cidade idílica. Demitido da Rádio Ipanema por causa do sotaque nordestino, o cronista e locutor retornou fracassado ao Recife, em 1941. Oito anos mais tarde, depois de circular por veículos dos Diários Associados no Nordeste, ele regressou em definitivo à então capital federal.

A ascendência negra de Maria ganha relevo no trabalho de Tauil, que menciona um ataque racista de Flávio Cavalcanti, apresentador de TV, à mulatice do pernambucano. "Obviamente, se Maria era chamado em tom agressivo de mulato, termo hoje recusado pela carga pejorativa, é porque tinha o dado racial visível —o único, aliás, dos cronistas da sua geração", afirma Tauil. Para o organizador, sua prosa melhorou nos anos em que viveu com Danuza Leão, de 1961 a 1964.

Estrela de prestígio mais discreto na constelação de cronistas modernos, Antônio Maria ganhou a admiração indiscreta dos escritores Ivan Lessa, Joaquim Ferreira dos Santos, autor do perfil biográfico "Um Homem Chamado Maria", Humberto Werneck e Xico Sá. Outro mestre, Luis Fernando Verissimo se destaca em sua valorização crítica, pois rompe a unanimidade em torno de Rubem Braga e o reconhece como o número um da crônica.

"Dos quatro grandes daquela época —Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Antônio Maria—, Maria era o mais completo, para não dizer o melhor e puxar briga. Ele fazia a crônica lírica e literária dos outros, mas fazia humor superior", diz Verissimo na quarta capa da nova antologia.

A prosa de Maria absorvia os assuntos minúsculos e a arte da falta de assunto, características repartidas entre os grandes cultores do gênero. No nado curto da crônica, ele meditava sobre o barulho da chuva, as delícias de um resfriado, sua infância no engenho, os telefonemas do pintor Di Cavalcanti, sua corpulenta solidão e a tristeza dos pedestres às 4h25 da tarde, na avenida Nossa Senhora de Copacabana. A mescla de melancolia e humor apurado marcava sua voz pessoal.

"Minha terra é fraca de flores, de maneira que as poucas que nascem são guardadas para os enterros – minha terra é forte de enterros", ironizou Maria. Sem medo, reconhecia-se como o mais feio de sua turma. "Menino só sabe que é feio, no colégio, quando o padre escolhe os que vão ajudar à missa, os que vão sair de anjo na procissão e os que vão constituir a diretoria do Grêmio Mariano."

O desconforto com a obesidade, o cansaço de si mesmo e a penúria financeira compunham seu humor melancólico. "Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida."

A alegria dominava seu papo em pessoa. Numa mesa da boate Vogue, como relata em "A Memória dos Nossos Feitos", ele brincou com a glória póstuma dos amigos. O poeta Thiago de Mello daria nome a um lugar de veraneio. Clarice batizaria o Edifício Lispector. "Rubem Braga é nome de praça: praça Rubem Braga". Com presença de espírito, pensou num Centro Espírita Fernando Sabino. "Vinicius de Moraes é nome de transatlântico. A notícia do jornal antecipa-se aos nossos olhos: ‘A bordo do Vinicius de Moraes, chegou hoje, a esta cidade, o pintor Cícero Dias’."

São cirúrgicos e cheios de graça seus perfis de Dorival Caymmi, José Lins do Rêgo, Di Cavalcanti, Rubem Braga, Joaquim Cardozo e Aracy de Almeida. O efeito de "Vento Vadio" na alma e na experiência da língua portuguesa se assemelha ao da clássica antologia "200 Crônicas Escolhidas", de Braga. Esses dois livros podem amenizar o vira-latismo de quem só exalta o jornalismo literário americano.

Em 15 de outubro de 1964, numa fase de solidão amorosa, Maria saiu para trocar um cheque no restaurante Le Rond Point, em Copacabana, e teve um infarto na rua. Morreu aos 43 anos. Na arte da sedução em boates, ele admitia às mulheres que era feio, mas pedia que lhe dessem 15 minutos de conversa. Quem lê "Vento Vadio" se deixa levar por essa lábia.

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