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'Vingança e Castigo' mostra que há faroeste depois de Clint Eastwood

Trabalho de Jeymes Samuel é uma fábula original do oeste e da negritude que enxerga a realidade através do excesso

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Vingaça e Castigo

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Regina King, Idris Elba e Jonathan Majors
  • Produção EUA, 2021
  • Direção Jeymes Samuel (The Bullitts)

É como se o western spaghetti tivesse dado uma cambalhota e caído no Arizona para nos lembrar que, afinal, nem tudo foi feito em matéria de velho oeste. Isto é, em poucas palavras, "Vingança e Castigo"

E, no entanto, parece que tudo ali já vimos em alguma parte, como se o filme de Jeymes Samuel —também conhecido como The Bullitts— fosse uma espécie de rearranjo de procedimentos já usados no bangue-bangue ou nos filmes de gângster.

Parece haver ali dezenas de fragmentos roubados de velhos faroestes. Mas o roubo faz parte dessas duas coisas, o faroeste e o cinema. O importante é que o produto dessa colagem resulta original, provocador, intrigante.

cena de filme
Regina King, Jacobi Howard, Lakeith Stanfield em cena do filme 'Vingança e Castigo', dirigido por The Bullitts e produzido pela Netflix - David Lee/Divulgação

Como ato de provocação, "Vingança e Castigo" afirma, já em sua abertura, que seus personagens são extraídos da vida real. Nada ali, no entanto, pertence à tradição, a começar por seu argumento opor duas gangues de personagens negros, as de Nat Love —Jonathan Majors— e Rufus Buck —Idris Elba —, em cidades inteiramente ocupadas por pessoas negras. Numa bem imaginada sequência, aliás, uma dessas gangues invade White City, a cidade dos brancos toda pintada de branco.

Não falta ousadia à empreitada de Samuel. Ele começa por desprezar a verossimilhança —isto é, a tradição— e abdicar de todo apelo realista, ao mesmo tempo em que projeta na tela a ideia de que nossa imagem do mundo hoje vem das imagens, não do mundo —o que Brian De Palma já nos ensinou.

Com isso, Samuel maneja seus recursos com a aparente consciência de que o faroeste, como gênero, existiu para criar o mito da nação americana e seus valores. Desde o cinema mudo essa construção ofuscou a história. Foi com essa mitologia que, de certa forma, Clint Eastwood acertou as contas em "Os Imperdoáveis", ao criar caubóis que não passavam de bêbados, idiotas ou sádicos.

Seria esse o oeste "real"? Ou, como diz um personagem de David Lynch, "não faça parecer real até que se torne real". Eis a proeza a que "Vingança e Castigo" chega: pelo caminho do excesso, do simulacro, é que se torna real.

Basta ver a primeira sequência para observar o estranho caminho que Samuel trilhará: lá está a casinha toda arrumada, pintadinha, bonitinha, onde vive o jovem Nat Love. E depois chegamos às cidades: de uma perfeição insultuosa, parecem tiradas de um jogo infantil de faroeste recém-trazido pelo Papai Noel para o Natal das crianças.

Também os pistoleiros envolvem-se nesse jogo de espetáculo que tem por ponto alto —ou baixo, conforme o olhar— os maneirismos técnicos, os planos de 180 graus, os ângulos "recherchés", o acúmulo de extravagâncias da câmera.

Mas eis que, no meio disso, explode em nossa cara a cena formidável, que começa dentro da casa de Rufus Buck e segue até trazer em primeiro plano um Nat Love que estava no fim da rua, do outro lado da cidade —o plano expressa o ponto de vista de Buck, arqui-inimigo de Love, e a atenção que o rival merece dele.

Com essas e outras, o que poderia ser notado até como defeito acaba se tornando não raro virtude, transformando nosso olhar, subvertendo as formas conhecidas, pois da soma de exageros e movimentos ostentatórios, o resultado é original.

Isso sem falar do belo encontro final entre os dois rivais, Buck e Love: o momento em que já não é preciso criar algo parecido com o real, pois tudo já se tornou real. Ou, como queria William Blake, o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Jeymes Samuel parece acreditar nas palavras de seu conterrâneo.

Com tudo isso, não é possível dizer que "Vingança e Castigo" seja um filme perfeito. Existe, por exemplo, uma inflação de personagens no roteiro a que Samuel mal consegue dar forma. Como decorrência, surgem tempos mortos desnecessários.

No entanto, tais problemas são resgatados por coisas como a intervenção de um personagem abertamente andrógino, Cuffee —Danielle Deadwyer— ou do surpreendente xerife Bass Reeves —Delroy Lindo.

Ou ainda pela percepção de que, sim, existe vida no bangue-bangue depois de Clint Eastwood (não vale citar Kelly Reichardt, que não trabalha cinema de massas). Isso sem falar, naturalmente, da música escrita pelo próprio Jeymes Samuel (inglês e músico de origem, que musicou em 2013 o enjoativo "O Grande Gatsby", de Baz Luhrmann), que ora evoca e subverte o oeste já visto (italiano ou não), ora passeia por ritmos que consagraram a música negra.

Com toda franqueza, o único defeito imperdoável de "Vingança e Castigo" é estar entrando em cartaz pela Netflix —sua produtora, admita-se. Espera-se que um dia seja possível ver essa surpreendente fábula do oeste e da negritude onde devia estar: numa bela e grande tela de cinema, numa sala cheia de gente.

O importante é que, de todo o suco de excessos, espetaculosidades, ostentação, o saldo é novo. Sim, havia vida depois de Clint Eastwood. Restava descobrir onde estava. Samuel parece que descobriu.

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