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Cinema América Latina

'Azor' recria ditadura argentina com ecos de Borges e Julio Cortázar

Primeiro filme de Andreas Fontana cria atmosfera de mistério cultuada por grandes escritores do país

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Azor

  • Quando Estreia nesta quinta (16)
  • Onde Nos cinemas
  • Classificação 12 anos
  • Produção Suíça, França, Argentina, 2021
  • Direção Andreas Fontana

Em "Azor", entramos aos poucos. Por exemplo, perguntando se a palavra quer dizer alguma coisa ou é um nome próprio. Quer dizer alguma coisa, sim. Num dialeto de amigos suíços, significa "cuidado com o que diz". Estão avisados, esses suíços, que chegam bem suavemente à Argentina. Estamos em plena ditadura e a principal preocupação do banqueiro De Wiel, diante de uma batida policial, é se o trânsito será liberado logo.

De fato, logo foi liberado. Mas talvez não tenha sido uma grande vantagem. Logo, De Wiel e sua mulher se verão diante da aristocracia platina, isto é, uma gente pelo menos esquisita, que fala baixo (e cuidadosamente) com as palavras, mas usa os olhos espertos para dizer muita coisa.

O banqueiro tem por missão substituir seu sócio Keys, cara simpático e ousado, porém desaparecido. E desaparecido, na circunstância, pode dizer muita coisa. Talvez ele seja um irresponsável. Mas pode ser outro o motivo. O certo é que De Wiel tem negócios a tratar. E, sendo um banqueiro suíço, é com essa gente estranha que ele deve tratar.

Essa gente, aliás, é que nos introduzirá de um modo indireto, mas não menos claro, aos usos e costumes da casta civil-militar que comanda o morticínio no país vizinho. Podemos até usar, figurativamente, o termo catacumba para os designar –ninguém ali se sente confortável. Sempre existe o risco de um pequeno deslize que faça desandar os bons negócios. E quem garante que seriam apenas os bons negócios?

O certo é que De Wiel não alcança muito sucesso, embora conheça muitas pessoas, inclusive um ex-piloto de corridas que agora tenta se lançar na política (alusão a Carlos Reutemann?). Todos gostam muito do banqueiro, mas bem pouco do seu banco. Gostam de cavalos, isso é certo, mas andam mais inclinados a investir em outros bancos ou a propor negociatas que não seduzem o suíço.

O importante nisso tudo é que o filme de Andreas Fontana, pouco a pouco, vai criando uma atmosfera de mistério (e crime) que não desmente a ilustre tradição de seus melhores escritores. Borges, que gostava de Genebra (onde vive De Wiel), Bioy Casares, estancieiro, e Cortázar, que gostava de Paris como os argentinos do filme.

Sim, a Argentina parece que comporta esses abismos –da grande literatura à selvageria militar não há grande distância. E não só militar, claro. Eles estão autorizados por essa aristocracia. E por um clero que joga frases como "estamos numa fase de purificação" (de modo discreto, porém enfático) –o suíço, bom entendedor, já sabe nessa altura do que ele está falando, mas faz cara de paisagem.

Mesmo os poderosos sabem que a coisa não é fácil. "Eles aqui vivem no medo do que pode acontecer amanhã", explica alguém. Uma boa frase para definir um universo que todo o tempo beira o fantástico e, com frequência, se faz de elipses, de pontas propositalmente soltas, de subentendidos, até mesmo de um estancieiro desiludido, cuja filha desapareceu nas mãos dos militares.

"Azor" de certa forma destoa bastante do espírito do recente cinema argentino. Mesmo o dos cineastas mais críticos. No mais, nesse seu longa de estreia, Andreas Fontana se empenha mais em nos restituir uma atmosfera dos tempos de ditadura do que propriamente em fazer sua crítica. É bem mais interessante do que possa sugerir o nome "Azor" (ao menos antes de ser explicado). Temos aí um cineasta que surge bem forte.

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