Descrição de chapéu The New York Times

'Beatles: Get Back' tem Yoko Ono abalando a banda como uma performance sublime

Longa duração do documentário revela a provocação da cantora presa a 'atividades corriqueiras' em toda a sua intensidade

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Amanda Hess
The New York Times

Bem no começo de "The Beatles: Get Back", documentário de quase oito horas dirigido por Peter Jackson sobre a gravação do álbum "Let It Be", a banda forma um círculo estreito em um canto do estúdio. Yoko Ono inexplicavelmente está lá.

Ela está inclinada na direção de John Lennon, seu rosto atento voltado para ele como uma planta se volta à luz. Quando Paul McCartney começa a tocar "I’ve Got a Feeling", Ono está lá, costurando alguma coisa que segura no colo. Quando a banda começa a tocar "Don’t Let me Down", Ono está lá, lendo um jornal. Lennon se acomoda ao piano, e Ono está lá, em pé por trás dele. Mais tarde, quando o grupo se aperta em uma cabine de gravação, Ono está lá, espremida entre Lennon e Ringo Starr, silenciosamente desembrulhando um chiclete e o entregando a Lennon. Quando George Harrison vai embora, furioso, deixando a banda temporariamente, lá está Ono, uivando inarticuladamente no microfone que costumava ser dele.

No começo, a presença de Ono no documentário parece bizarra e até enervante. A vastidão do estúdio só serve para ressaltar ainda mais o absurdo de sua proximidade. "Por que ela está lá?", perguntei ao meu televisor.

Mas, com a passagem das horas e com a permanência de Ono —diante de um cavalete, pintando; comendo um doce; folheando uma revista de fãs de Lennon—, terminei impressionada por sua resistência, fascinada pela provocação de sua existência; e, por fim, deslumbrada por sua performance.

Minha atenção se voltava constantemente a ela, em seu canto da tela. Eu estava vendo imagens íntimas e, por muito tempo, indisponíveis, da banda mais famosa do mundo se preparando para seu último show e não conseguia desviar os olhos de Yoko Ono, que estava sentada lá fazendo nada.

Algumas pessoas entendem "The Beatles: Get Back" como um documento de inocência, uma prova de que Ono não foi responsável por destruir os Beatles. "Ela não expressa opiniões sobre as coisas que eles fazem", disse Jackson, que criou os documentários com base em mais de 60 horas de imagens, em entrevista ao programa 60 Minutes. "É uma presença muito benigna e não interfere de maneira alguma."

Ono é uma das produtoras da série e tuitou, sem comentar, um artigo que afirma que ela estava lá fazendo "coisas corriqueiras" enquanto a banda trabalhava.

Na série, McCartney mesmo —falando em janeiro de 1969, mais de um ano antes da dissolução pública da banda— zomba da ideia de que os Beatles iam terminar "porque Yoko está sentada em um amplificador".

A presença dela já foi descrita como gentil, silenciosa e discreta. Na verdade, ela não responde pelas intrusões mais incômodas. Esse papel cabe a Michael Lindsay-Hogg, o desastrado diretor de "Let It Be", o documentário original do qual as imagens agora usadas por Jackson se originam. Ele insiste em que a banda realize um show em um anfiteatro arruinado na Líbia, ou talvez em um hospital para crianças que sofram de doenças reconfortantemente inofensivas.

Mas existe algo de deprimente em redefinir Ono como uma figura silenciosa, discreta e quase invisível. É claro que a presença dela no estúdio é obstrutiva. O fato de que não influencie diretamente as gravações da banda só torna seu comportamento mais ridículo. Negar o fato é privar a artista de seu poder.

Desde o começo, a presença de Ono parece intencional. Suas roupas escuras e frouxas e seus cabelos repartidos ao meio a tornam parecida com uma barraca; é como se ela estivesse montando um acampamento, ocupando espaço no ambiente da banda. Uma tarefa "corriqueira" se torna algo de peculiar quando a pessoa a tenta executar bem diante do rosto de Paul McCartney enquanto ele trabalha para compor "Let It Be". Repetir esse processo por 21 dias é simplesmente espantoso.

A longa duração do documentário revela a provocação de Ono em toda a sua intensidade. É como se ela estivesse encenando uma performance artística de longa duração e, de certa forma, é exatamente isso que ela está fazendo.

Jackson definiu sua série como "um documentário sobre um documentário", e somos constantemente lembrados de que estamos presenciando o esforço da banda para produzir uma imagem para as câmeras.

Ono já era uma artista performática renomada, é claro, quando conheceu Lennon, sete anos mais jovem do que ela, em uma mostra em uma galeria de arte em 1966. Ela foi uma das pioneiras da arte participativa, colaborou com músicos experimentais como John Cage e se tornou mestra em aparecer discretamente em lugares aos quais supostamente não pertencia.

Em 1971, ela realizou uma exposição imaginária de obras efêmeras no Museu de Arte Moderna de Nova York. No catálogo, uma foto a mostra diante do museu segurando um cartaz com a letra "F", o que transforma a instituição em "Museum of Modern [F]art]", ou museu do flato moderno.

A ideia de que Ono é responsável pela destruição da banda sempre foi infundada e trazia elementos de misoginia e racismo. Ela foi retratada como a groupie do inferno, como uma "mulher dragão" sexualmente dominante e como uma feiticeira que hipnotizou Lennon e o levou a largar os amigos em troca de uma mulher qualquer.

(Em 1970, a revista Esquire publicou um artigo com o título "A Groupie Excrusiva de John Rennon"), que prometia revelar "a Yoko que ninguém conhece" e vinha acompanhada por uma ilustração que mostrava Ono como uma figura imensamente maior que Lennon, retratado como uma barata presa a uma coleira que ela trazia nas mãos.)

Todas essas agressões se converteriam em uma espiral incansável de memes de cultura pop que acompanham gerações de mulheres acusadas de intrusão no gênio masculino.

Ono não "separou os Beatles". (Se o impulso de Lennon de se distanciar da banda foi influenciado pelo seu desejo de buscar outras atividades, que incluem seu relacionamento pessoal e criativo com Ono, a decisão foi dele.) Mas ela com certeza interferiu.

No documentário, McCartney se queixa educadamente de que suas composições com Lennon estão sendo perturbadas pela onipresença de Ono. De sua parte, ela sempre fez questão de escapar ao papel tipicamente reservado à "mulher do artista". Em uma entrevista de 1997, ela comentou o status das mulheres no rock da década de 1960.

"Minha primeira impressão é de que eu estava diante de um grupo de cônjuges, sentadinhas na sala ao lado enquanto os rapazes conversavam", ela disse. "Eu tinha medo de me tornar algo assim." Mais tarde, ela dedicaria uma canção sarcástica que lançou em 1973, "Potbelly Rocker", ou roqueiro barrigudo, às "mulheres de roqueiros cujos nomes não serão citados".

Em "Grapefruit", um projeto de arte textual que ela realizou em 1964 e serve como uma espécie de livro de receitas para encenar experiências artísticas, ela aconselha os leitores a "não olhar para Rock Hudson, e sim para Doris Day", e em "The Beatles: Get Back", ela habilidosamente redireciona os olhares, da banda para ela.

Sua imagem contrasta com as das demais parceiras dos Beatles —mulheres brancas com jeito de modelo, que usavam roupas chiques e se aproximavam ocasionalmente para um beijo e um aceno encorajador, antes de saírem de cena. Linda Eastman, futura mulher de McCartney, era uma presença um pouco mais constante, às vezes circulando pelo estúdio e fotografando a banda. Eastman era retratista de rock, e um dos momentos mais fascinantes do filme a mostra conversando seriamente com Ono; como se para demonstrar o que Ono afirma, é uma das raras interações que acontecem no set e que não foi registrada em áudio.

Ono simplesmente se recusa a ir embora, a sair de cena e partir para os bastidores, mas também resiste a encenar os estereótipos. Ela não parece nem uma fã ingênua nem uma enxerida que tenta ganhar controle. Em lugar disso, parece estar praticando uma forma de resistência passiva, desafiando todas as expectativas quanto às mulheres que ingressam no reino do gênio do rock.

"Be My Yoko Ono", uma canção do grupo Barenaked Ladies, a compara a uma bola de ferro amarrada ao tornozelo. (Como referência, Ono disse ter gostado da canção.) No entanto, à medida que as gravações prosseguem, ela parece pesar cada vez menos. A impressão é de que orbita Lennon, eclipsando seus colegas de banda e se tornando uma manifestação psicológica da distância que surgiu entre ele e seu velho centro de gravidade artístico.

Mais tarde, a performance dela ganharia intensidade. As sessões de "Let It Be" foram seguidas pela gravação de "Abbey Road" e, de acordo com um dos engenheiros do estúdio, quando Ono se feriu em um acidente de carro, Lennon conseguiu que uma cama fosse instalada no estúdio. Ono se acomodou, tomou posse de um microfone e convidava amigos a fazer visitas.

Podemos definir essa situação de muitas maneiras –codependência, ou uma tremenda falta de educação, mas também como emblemática. Quanto mais a presença de Ono é contestada, mais sua performance se intensifica. Tudo isso foi usado cruamente para fazer de Ono uma vilã cultural, mas também faria dela uma espécie de heroína popular, mais tarde.

"Devemos tudo a Yoko Ono", escreveu a baterista Tobi Vail em um zine conectado à sua banda, Bikini Kill, parte do movimento "riot grrrl" em 1991. "Parte do que seu namorado ensina a você é que Yoko Ono destruiu os Beatles", ela escreve. E aquela história "faz de você o oposto da banda em que ele toca".

Relega as mulheres à plateia e as ridiculariza por tentarem fazer música por sua conta. Em "20 Years in the Dakota", canção da banda Hole lançada em 1997, Courtney Love invoca os poderes de Ono contra uma geração de fãs chorosos e diz que a geração "riot grrrl" tem uma dívida permanente para com ela. Vail definiu Ono como "a primeira cantora punk de todos os tempos".

No filme de Jackson, as sementes dessa transição geracional são visíveis. Um dia, Heather, filha de Eastman, uma garotinha de franjas, está passeando sem rumo pelo estúdio. De repente, ela vê Ono cantando. A menina a observa com uma expressão de intensa concentração e aí vai ao microfone e começa a uivar.

Tradução de Paulo Migliacci

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