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Contos de Ulítskaia contrapõem fantasia infantil à realidade

Coletânea 'As Meninas' traz personagens transitando por textos independentes com situações universais ressignificadas

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De uma literatura que sempre conheci como de homens (dos geniais russos Tolstói, Dostoiévski, Gorki, entre outros), com exceção de alguma poeta de destaque (Marina Tsvetáieva, por exemplo), eis que passo a ler esta incrível Liudmila Ulítskaia, escritora tardia, nascida em 1943, mas que só começou a publicar na década de 1990, já perto dos 50 anos de idade.

mulher branca de cabelos quase grisalhos e raspados
A escritora russa Liudmila Ulítskaia, autora de 'Meninas', seu primeiro livro publicado no Brasil pela editora 34 - Divulgação

"Meninas", de 2002, é uma coletânea de seis contos independentes, mas como se fizessem parte de um único enredo, porque as personagens transitam de um conto para outro. As histórias retratam situações exemplares vividas na infância, cheias de significações, e que cabem em todas as épocas e lugares (embora se passem na então União Soviética stalinista das décadas de 1940 e 1950).

Os contos, que parecem, de início, uma superficial sequência de fatos do enredo, em técnica narrativa convencional, seguem, na verdade, num crescendo surpreendente, em que o fio condutor é uma tensão que gera suspense. De modo tal que acabam por constituir uma investigação poderosa, ao mesmo tempo dramática e lírica, da psique infantil, da importância da brincadeira, da invenção lúdica na percepção da realidade pelas crianças.

Bati o olho no título do penúltimo conto, "Catapora", e foi o primeiro que li, por curiosidade e identificação imediata. Afinal, quem não passou pelo inferno da catapora na infância que levante a mão.

Nesse conto, um grupo de meninas na faixa dos dez anos brinca de se fantasiar de gente grande, a partir da imitação de imagens de velhos cartões postais. Como estão sozinhas na casa, reviram tudo em busca de vestimentas, sapatos, batons e outros artefatos que atribuam às fantasias (de noivos e noivas, de reis, príncipes e xás) a verossimilhança necessária para manter no ápice a emoção da brincadeira.

Nesse intenso universo de meninas, as personagens praticam os jogos de ser, ou de vir-a-ser, da infância: da escolha de papéis (quem vai ser homem ou mulher), ao jogo de dominação, para ver quem lidera; do exercício primário da sexualidade à culpa e o constrangimento posterior.

"Vamos todas nos disfarçar, rápido!", diz uma delas ao início da troca de roupas para começar a cena inventada, "prestes a partir", como diz o narrador, "para uma vida imaginária harmoniosa, onde as regras da brincadeira transformavam a realidade insatisfatória em algo justo e deleitosamente maleável, e o mundo inteiro andava em círculos na direção a que fosse enviado...".

Uma dessas direções era "aquela escuridão embaixo da mesa" que "obrigava a fazer algo terrível e misterioso", as carícias do sexo. Mas e a catapora em si? Para onde foi a catapora tão anunciada em título? Eis o mistério que atiça ardentemente a leitura.

Mesma tensão percorre a história "A Enjeitada", cuja trama traz no centro a rivalidade entre irmãs gêmeas ( Viktória e Gayané), reveladora do tanto de perversidade também característica da conduta social de crianças. Ambas as irmãs aparecem ainda no conto "Catapora". Destaque para a personagem de Kolivânova neste último também, a menina pobre, a última da classe, que desenvolve uma ardente paixão por sua professora (mas quem nunca não?) no conto "A Pobre, Feliz Kolivânova".

Esses personagens símbolos das agonias da infância são percebidos com fina sensibilidade por Ulítskaia, ela que, na voz do narrador, solta aqui e ali a crítica à sociedade de classes e aos conflitos étnicos de seu país. Também feminista e militante política, ela se declara hoje abertamente contra a ditadura Putin na Rússia.

A tradução impecável de Irineu Franco Perpétuo, diretamente do russo, valoriza muito o estilo da escritora: essa atmosfera de sonho efêmero, em que a realidade só existe porque existiu antes a brincadeira, como num delírio de febre alta decorrente de susto, um medo, uma ferida, terrores da infância.

Esses contos atestam o que diz Winnicot: que é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo pode ser criativo e descobrir o seu eu integral. "É a brincadeira que é universal e que é própria da saúde", afirma ele. O resto é realidade, doença, catapora.

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