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Djaimilia Pereira de Almeida discute o silêncio e a justiça em mesa forte da Flip

Autora angolana protagonizou um dos melhores debates da festa literária ao lado da turca Elif Shafak

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Walter Porto Nathan Fernandes
São Paulo e Ubatuba (SP)

A angolana Djaimilia Pereira de Almeida e a turca Elif Shafak protagonizaram nesta quinta-feira, sexto dia de Flip, uma das mesas mais fortes da festa literária até agora.

Com uma discussão que refletiu sobre o poder dos silêncios, o peso das heranças e a multiplicidade contida em cada pessoa, duas das autoras mais talentosas em atividade teceram um diálogo natural sobre suas últimas obras.

​Djaimilia afirmou que "A Visão das Plantas", romance curto que lançou no Brasil pela Todavia, não foi escrito com qualquer interesse em julgar o seu protagonista, um capitão de navio negreiro que termina a vida cuidando do jardim de sua casa com a consciência plenamente limpa.

"O livro trabalhava sobre uma possibilidade desconcertante, a de não existir justiça no mundo, nada que nos conforte", argumenta. "As plantas têm nisto uma função importante, são as testemunhas mudas que olham esse homem, são cuidadas por ele, nunca o julgam. A narração parte deste ponto de vista e não assume nenhuma posição em particular, apresenta uma situação e deixa ao leitor o espanto, a revolta, a insatisfação."

A autora, premiada com o Oceanos, afirmou que não lhe interessa impingir seus juízos pessoais sobre as personagens, mas apresentar todas "em sua espetacular multiplicidade e contradição".

​​Shafak também fez uma defesa apaixonada de que todos os humanos contêm multitudes, como diz a frase famosa de Walt Whitman.

"Acredito em pertencimentos múltiplos, não quero pensar na identidade como uma coisa singular", afirmou a escritora. "O mundo nos reduz a pequenas caixas, especialmente os jovens que vêm de um histórico complexo."

A autora se disse interessada nos "silêncios das famílias que passam por grandes traumas ou deslocamentos em imigrações". "Os mais idosos passaram pelos maiores obstáculos, mas os mantêm enterrados em si mesmos. A segunda geração não parece ter tempo para o passado. São as gerações seguintes que fazem as grandes perguntas sobre seus ancestrais."

Nem sempre é fácil saber o que essas pessoas silenciosas teriam a dizer. Nem mesmo quando elas são suas próprias criações. Djaimilia afirmou fazer um esforço de se calar para ouvir seus personagens, de modo a não sobrepor sua voz à deles.

"A minha opinião não interessa nada. Interessa-me que uma figura me revele alguma coisa sobre a vida dela. Se eu estiver a acusá-la de alguma coisa, a impor-lhe uma sentença, ela vai ficar absolutamente calada, e depois não há livro, nem nada."

Na segunda mesa do dia, a jornalista Eliane Brum e o premiado escritor de ficção científica Kim Stanley Robinson debateram sobre como as "políticas vegetais" podem nos guiar em direção a um futuro habitável.

No recém-lançado "Banzeiro Òkòtó", da Companhia das Letras, Brum reflete sobre a crise climática a partir da Amazônia, lugar que escolheu como casa em 2017. "Defendo que a Amazônia é o centro do mundo, então senti que precisava fazer essa mudança por coerência. É uma mudança geopolítica, no sentido de deslocar para o centro um outro tipo de pensamento que não seja binário, patriarcal e de matriz europeia", defendeu.

"Não é com esse pensamento que vamos sair desse abismo em que estamos hoje. Quem vai fazer isso é o pensamento dos povos indígenas, ribeirinhos, caiçaras, que eu chamo de povos-natureza."

Apesar de se considerar um escritor de utopias, Robinson é conhecido por retratar catástrofes climáticas em suas obras. "A definição de utopia tem sido reduzida a esse ponto de apenas querer sobreviver", apontou. Entre seus trabalhos mais conhecidos estão a Trilogia de Marte, vencedora dos prêmios Hugo, Nebula e Locus — considerados a tríade de ouro da ficção científica.

Os leitores brasileiros podem conhecer seu estilo através do livro "Nova York 2140", da Planeta. Em sua obra mais recente "The Ministry for the Future", inédito no Brasil, o autor volta sua atenção aos desafios do capitalismo e do mercado financeiro em um futuro próximo assolado pela crise do clima.

"Uma das propostas do livro é a de que precisamos desabitar metade do planeta para reconstruir as florestas", aponta ele. "Fiquei surpreso porque, recentemente, o presidente Biden comentou sobre a ideia de deixar 30% dos EUA desabitada. Me anima a ideia de que os políticos percebam os animais e a floresta também como cidadãos dentro de um quadro político que não é constituído somente por seres humanos."

Discordando da proposta de Robinson, a escritora reforçou que o enfrentamento da emergência climática passa pelo enfrentamento da desigualdade racial, de gênero e também de espécies.

"Por isso, acho que essa ideia de reservar uma parte do planeta para florestas e animais é um pensamento de brancos, que considera seres humanos como uma coisa homogênea. Quem está destruindo o planeta é uma minoria dominante de humanos, não são todos", pontuou.

Instada a falar sobre Bolsonaro, Brum lamentou o descaso do governo com a questão climática, afirmando que, no último mês, a Amazônia sofreu a maior taxa de desmatamento dos últimos 15 anos —e a informação foi convenientemente ocultada durante a Conferência do Clima da ONU, a COP-26.

"Bolsonaro é um genocida, e eu defendo essa palavra com base em dados e pesquisa. Ele é uma aberração que está ajudando a levar outros biomas ao ponto de não retorno. Mas precisamos entender que ele é criatura, não é criador. É o resultado daquilo que não foi resolvido durante séculos no Brasil, como o racismo estrutural. Ele ainda não sofreu impeachment porque ainda serve a essa minoria dominante que destrói o planeta."

Ainda assim, a escritora se recusou a terminar a discussão em tom pessimista. "Precisamos olhar para a resistência. Porque se existe uma minoria que destrói o planeta, também existem pessoas que resistem, a exemplo dos povos indígenas que tiveram seu primeiro fim do mundo em 1500", concluiu.

A Flip continua até o próximo domingo com mesas que podem ser vistas de forma gratuita e virtual pelo canal de YouTube da festa literária.

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