Em 2021, Mario Frias xingou muito no Twitter e clamou a Deus contra projeto de jazz

Cultura sob Bolsonaro, que disputa quem tem mais processos, também promoveu cruzada contra livros de esquerda

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Sem título, da série 'Caderno de Ressacas'

Sem título, da série 'Caderno de Ressacas', que integraria exposição Suaves Brutalidades Divulgação

Belo Horizonte

Depois de um 2020 cheio de trocas no comando da Secretaria Especial da Cultura, Mario Frias, ávido usuário de redes sociais, conseguiu se firmar no cargo, munido de sua lealdade canina ao presidente Jair Bolsonaro e de seu apego a pautas de costumes —tudo isso muito bem registrado nas redes sociais.

O ex-galã de "Malhação" posta rotineiramente que Jair Bolsonaro é o melhor presidente que este país já teve, e também não são raras as suas reações a projetos culturais que envolvam temas sensíveis ao atual presidente —reações estas que, vindas de um representante do governo com poder de mando, acabam tendo consequências no mundo real.

Já em fevereiro, de forma inédita, o governo reprovou o projeto de plano anual do Instituto Vladimir Herzog na Lei Rouanet. A instituição tem objetivo de preservar a memória do jornalista torturado e morto pela ditadura militar. A justificativa de Frias foi a de que o instituto não desenvolve apenas atividade cultural, mas também jornalística.

Quando o prefeito de Itajaí, em Santa Catarina, cancelou um evento virtual chamado Roda Bixa, Frias comemorou. A live buscava resgatar as memórias de infância de pessoas LGBTQIA+ e foi contemplado pela Lei Aldir Blanc. "Parabenizo a prefeitura por reconhecer o equívoco, cancelando o edital. Evitará que tomemos medidas jurídicas", Frias disse então. Posteriormente, a Justiça entendeu que o evento não fazia apologia da pedofilia.

Em julho, o Festival de Jazz do Capão, na Chapada Diamantina, na Bahia, recebeu um parecer negativo ao tentar autorização para captar recursos via Lei Rouanet. O documento do governo, que deveria ser técnico, vinha carregado de frases religiosas, como "o objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma", atribuída a Johann Sebastian Bach.

A negativa foi justificada pelo fato de o festival, em sua página no Facebook, ter feito uma postagem dizendo ser "antifascista e pela democracia". O argumento do governo é que essa postagem seria uma prova de que o festival de jazz não seria um festival cultural, e sim político.

Em outubro, o governo Bolsonaro publicou portaria vetando o uso e a apologia da chamada linguagem neutra —de termos como "todes", "menines"— em projetos financiados pela Lei Rouanet.

Críticos a esse tipo de ação afirmam que se trata de um novo tipo de censura. Não um ato deliberado, como acontecia durante a ditadura militar, mas um novo tipo que se disfarça sob a forma de uma norma burocrática para dificultar que projetos não alinhados aos valores do atual governo prosperem.

Essa mão pesada nas artes não veio só do governo federal. Em Belém, a exposição homoerótica "Suaves Brutalidades", de Henrique Montagne, vencedora de um edital do Banco da Amazônia, foi cancelada prestes a ser montada.

Montagne diz que, a partir do momento em que passou a marcar o banco em suas postagens de divulgação no Instagram, as negociações tomaram outro rumo. O feed do artista é repleto de imagens homoeróticas. Logo depois disso, a exposição foi cancelada.

A justificativa dada pelo banco ao artista tinha a ver com restrições em meio à pandemia. Na semana anterior, porém, funcionou no mesmo espaço a exposição "Em Casa", de Elisa Arruda, sem temática LGBTQIA+ explícita.

As redes sociais também foram palco de constantes disputas entre a esfera federal e o governo de São Paulo.

Numa delas, já em janeiro, as gestões Doria e Frias disputaram o mérito da reforma do Museu do Ipiranga, previsto para reabrir em setembro do ano que vem, na comemoração do bicentenário da Independência do Brasil.

Frias chamou Doria de "farsa patética" e ameaçou reprovar as contas da reforma caso o ex-"Show Business" inaugurasse o museu sem a autorização do ex-"Malhação".

Outra disputa entre São Paulo e governo federal envolveu o chamado passaporte da vacina. Frias insistiu que instituições culturais da União em território paulista seriam proibidas de cobrar comprovante de vacinação dos seus visitantes. O governo estadual afirmou que suas instituições "seguirão exigindo a comprovação da vacina e defendendo a vida".

Fora das redes, Mario Frias deu indícios de que não briga só no Twitter. A reportagem ouviu pessoas que relataram ter presenciado, mais de uma vez, o ator aos gritos, xingando e ofendendo funcionários da Secretaria Especial da Cultura. Segundo elas, o secretário usava arma na cintura à vista de todos enquanto estava na Esplanada, e o clima de assédio moral e desconforto era constante. O Ministério Público do Trabalho abriu investigação para apurar as acusações.

Algo semelhante foi dito de um subordinado seu, Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, e também raivoso nas redes sociais. Ele foi acusado de assédio moral, perseguição ideológica e discriminação contra funcionários da instituição.

O presidente da instituição liderou uma cruzada ideológica para limar do acervo da fundação livros que ele entende como sendo esquerdistas. Em junho deste ano, a Palmares publicou um relatório chamado "Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista", segundo o qual metade do acervo de obras da instituição seria excluído —entre os os títulos expurgados, estariam os de autores como Karl Marx, Friedrich Engels e Lênin, mas também de Max Weber, Eric Hobsbawm, H. G. Wells, Celso Furtado, Carlos Marighella e Marco Antonio Villa.

Camargo foi afastado das atividades relacionadas à gestão de pessoas da instituição —dessa forma, ele fica proibido de nomear e exonerar servidores— após o Ministério Público do Trabalho passar a apurar denúncias de assédio moral na Palmares.

​Processos na Justiça não são raridade na Cultura sob Frias. Chefes da pasta chegaram a disputar quem respondia a mais ações judiciais, num deboche de Twitter. Em setembro, o subsecretário de Fomento e Incentivo à Cultura postou que ele e Frias respondiam a 77 processos. "É o custo de tentar moralizar os mecanismos de fomento da Cultura", disse em rede social.

Camargo então quis disputar quem era o mais visado. "Eu somo mais de 30 ações judiciais ou administrativas, além de uma suspensão de quase três meses do cargo, duas representações na ONU, inúmeras notas de repúdio e abaixo-assinados pela minha saída e uma invasão. Somar os dois [Frias e Porciuncula] é covardia. Quero ver no mano a mano quem vence", escreveu.

Neste fim de ano, Frias e Porciuncula, que é secretário nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, têm mais duas ações para sua conta, pelo menos.

Uma delas vem da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que foi acionada e agora apura se há cerceamento de liberdade artística e cultural no Brasil. A CIDH é um órgão independente da OEA, a Organização dos Estados Americanos. Durante a audiência tocada pela CIDH, Porciuncula preferiu se defender fugindo de perguntas e soltou frases como "a cultura é como uma heráldica mística sagrada tremulando".

Entre os acusadores, está Wagner Moura, que afirma ter sofrido censura pelo fato de a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, ter mandado arquivar o lançamento de seu filme, "Marighella", cinebiografia do guerrilheiro de esquerda.

Há ainda uma intimação, vinda do Supremo Tribunal Federal, que determinou que o presidente Jair Bolsonaro, além de Frias e Porciuncula, deem explicações sobre a atual crise pela qual passam a Lei Rouanet e a Ancine.​

Eles deverão falar a respeito de acusações de estarem empreendendo atos análogos à censura, por causa de portarias editadas pelo governo Bolsonaro que limitam o número de projetos a serem aprovados na Lei Rouanet e priorizam determinadas áreas artísticas, além do esvaziamento da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a Cnic.

A Cnic é um colegiado formado por representantes da sociedade civil, responsável por avaliar projetos para a obtenção de incentivo fiscal via Lei Rouanet e está inativa desde abril. O governo Bolsonaro protelou tanto a abertura de novo edital para selecionar a nova composição da Cnic que o comitê só deve voltar no ano que vem.

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