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Livros

Em 'Contos Morais', J. M. Coetzee abranda a malícia com emotividade

Precisão do sul-africano funciona bem nas histórias curtas, embora não tragam nada diferente do que já se viu em sua obra

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CONTOS MORAIS

  • Preço R$ 54,90 (152 págs.)
  • Autor J. M. Coetzee
  • Editora Companhia das Letras

A personagem Elizabeth Costello fez sua primeira aparição em "A Vida dos Animais", publicado originalmente em 1999. Alter ego de J. M. Coetzee, ela retornou em "Elizabeth Costello", de 2003.

Os livros rompem as fronteiras entre ficção e não ficção, mas também entre romance e conto —de modo que é possível tomar os dois por um punhado de episódios precariamente interligados. Dentro dos limites do gênero, porém, Coetzee só havia publicado um volume de contos, "Three Stories", de 2014, nunca traduzido no Brasil.

Sete narrativas breves, escritas entre 2008 e 2017, compõem "Contos Morais". Há nelas um tom de fábula, embora seus animais não sejam antropomorfizados e não haja uma lição de moral –ou uma lição de moral inequívoca– como desfecho. E, com exceção das duas primeiras, todas as outras giram em torno da mesma Elizabeth Costello.

O escritor sul-africano J. M. Coetzee, vencedor do prêmio Nobel literatura - Eric Millerone/AFP

A ligação da personagem com os animais não é nova. Nos dois livros citados nesta resenha, Costello —também ela escritora e vegetariana, como Coetzee— dá palestras em que defende o que costumamos chamar, de forma bastante genérica, de "a causa animal". Ela própria é descrita ora como uma foca velha e cansada que repete o mesmo número bobo nos eventos literários de que participa, ora como um gato astuto e frio de olhos amarelos.

A imagem inofensiva e um tanto grotesca da foca acaba por prevalecer. Em "Homem Lento", de 2005, Costello surge do nada para interferir nos rumos de uma narrativa na qual ela não se encaixa, realizando alguns de seus velhos truques de escritora. É quando se dá sua transformação em personagem cômica –em uma mulher atrapalhada, confusa e ensimesmada que se comunica aos trancos.

A comicidade não abandonou a personagem e, em "Contos Morais", convive lado a lado com a gravidade de certos tópicos —a decadência física, a solidão, a maneira como enxergamos e tratamos seres não humanos. São os temas grandiosos que Coetzee, num livro que compila sua correspondência com o também escritor Paul Auster, disse serem seus temas tardios.

Costello está envelhecendo —pela quarta vez, mas ninguém está contando; aliás, ela já morreu e já enfrentou uma espécie de tribunal celestial ao final de "Elizabeth Costello". Seus filhos querem que ela vá para uma "instituição", mas ela prefere viver cercada de gatos num vilarejo espanhol isolado. Ela tem cada vez mais dificuldade de se fazer entender pelos outros. Suas falas parecem francamente contraditórias.

A concisão e a precisão da escrita de Coetzee funcionam bem nos contos, embora não deem, aqui, origem a nada muito diferente do que já se viu no restante da obra. O procedimento é conhecido. O repertório é conhecido e nem sequer surge remanejado. Os próprios contos são repetitivos, e estamos falando de um livro de pouco mais de cem páginas.

A batalha de Elizabeth Costello contra aquilo que os filósofos escreveram a respeito dos animais continua, tendo Heidegger como alvo principal. As ideias algo excêntricas da personagem são exacerbadas, assim como as consequências do envelhecimento. Seu relacionamento distante com o filho John entra em pauta novamente.

Mesmo os contos que não têm Costello como personagem ecoam suas aparições anteriores. Em um deles, uma mulher lamenta que o amante não seja pintor para poder retratar sua beleza fugaz. Elizabeth Costello conta algo bem parecido no livro que leva seu nome.

É nele, também, que Costello critica Hölderlin por estar sempre "pronto demais a tomar as coisas por seu valor imediato", por não estar "alerta o suficiente para a malícia da história". É um bom farol para a literatura de Coetzee, na qual tampouco se pode navegar com ingenuidade.

A malícia não se perde, mas seu efeito é mais brando, diluído na previsibilidade e numa emotividade que Coetzee costumava mascarar melhor —e que aqui acaba sendo quase sempre bem-vinda, como uma espécie de força insuspeita .

Coetzee escreveu livros excelentes ao longo de uma carreira que já dura quase 50 anos, de modo que dizer que "Contos Morais" não é o melhor trabalho do autor é dizer pouco ou nada. E, justamente porque se está em terreno bem conhecido, a coletânea é mais bem aproveitada por quem sabe onde está pisando. Pode ter sido uma frase contraditória à la Costello, sim, mas fazer o quê.

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