Emily Dickinson, em versão século 21, encontra lugar em arquivos históricos

Objetos de cena da série 'Dickinson' serão doados ao museu da poeta e à biblioteca de Harvard

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Jennifer Schuessler
The New York Times

A série "Dickinson", da Apple TV+, tem sido elogiada por sua visão absurdista e existencial da vida de Emily Dickinson, que converte a poeta numa protofeminista engajada, abrindo seu caminho num tempo tão turbulento quanto o nosso. Mas mesmo seus momentos de fantasia mais desvairada são ancorados em estudos acadêmicos históricos e teoria literária de vanguarda, fato que lhe valeu uma base de fãs inveterados entre os estudiosos da escritora.

Agora uma série que nasceu de arquivos históricos está retornando por toda a eternidade, como a própria Emily Dickinson poderia ter dito, ao lugar de onde veio.

A série, cuja terceira e última temporada terminará em 24 de dezembro, vai doar dezenas de figurinos, móveis, objetos de decoração e acessórios de época ao Museu Emily Dickinson, em Amherst, Massachusetts, onde serão usados para criar uma ideia mais concreta do cotidiano da poeta na casa onde ela nasceu e viveu.

Numa iniciativa inesperada, a série vai doar à Biblioteca Houghton, da Universidade Harvard, o arquivo de produção de roteiro, figurinos e acessórios de set de "Dickinson". Fazem parte dessa coleção as recriações cuidadosamente produzidas pela série dos manuscritos de Dickinson, que serão expostas ao lado de mais de mil exemplos de artefatos reais.

O anúncio está ligado ao aniversário de Emily Dickinson, que se celebrou no dia 10 de dezembro nos dois locais com uma festa virtual que incluiu poesia, homenagens artísticas e possivelmente algumas fatias do famoso bolo negro de Dickinson (destacado num episódio da segunda temporada).

"É um presente de aniversário para Emily", disse a criadora da série, Alena Smith, falando das doações. Ela descreveu a coleção da série como "um tesouro de coisas belas" que foi útil para transmitir a mensagem subversiva do show, além de uma trilha sonora totalmente contemporânea e diálogos próprios da geração Z.

"Tudo que você vê na série tinha que ser precisamente perfeito para a época a fim de que a música e a linguagem pudessem encenar sua rebelião contra aquela perfeição", diz Smith.

Jane Wald, a diretora do museu, visitou o set da série na primavera passada. Decidiu que escolheria alguns objetos. O museu acabou levando itens suficientes para lotar alguns caminhões, incluindo móveis, luminárias e um dos acessórios mais fantasiosos da série: a carruagem na qual anda a Morte, representada pelo rapper Wiz Khalifa. Os objetos serão usados para mobiliar a casa (fechada para reformas até a próxima primavera do hemisfério Norte) no autêntico estilo do século 19, segundo um plano de decoração preexistente.

"É um legado que se funde com outro. E tudo isso reconhece o poder atemporal da poesia de Emily Dickinson", afirma Wald.

A doação feita à Biblioteca Houghton de Harvard é a primeira de objetos provenientes de uma série de televisão a ser aceita pela entidade, conta Christine Jacobson, curadora assistente de livros e manuscritos modernos.

Ella Hunt (Sue) e Hailee Steinfeld (Emily Dickinson), em cena de 'Dickinson', da Apple TV+
Ella Hunt (Sue) e Hailee Steinfeld (Emily Dickinson), em cena de 'Dickinson', da Apple TV+ - Divulgação

Jacobson começou a seguir Smith no Twitter em 2018, após ter tomado conhecimento da série quando a produção pediu permissão para reproduzir um retrato pertencente a Harvard.

As duas viraram amigas virtuais (tendo se aproximado graças a uma paixão em comum por literatura russa) e, no verão passado, quando Smith perguntou se a biblioteca Houghton teria interesse em materiais da série, Jacobson não pensou duas vezes antes de aceitar.

A coleção será útil para estudiosos de Dickinson, disse Jacobson, mas também a estudiosos da cultura do fandom —uma área na qual Emily Dickinson, graças à série, pode estar alcançando Jane Austen, autora que tem um universo em constante expansão.

"Qualquer pessoa pode assistir a ‘Dickinson’, a série, e ver evidências de que a relevância cultural da poeta é duradoura", comenta ela. "Mas, para saber o que os criadores da série estavam pensando, quais foram seus processos, quais foram suas influências, você terá que vir à biblioteca."

A doação à Biblioteca Houghton inclui uma grande quantidade de objetos que ao mesmo tempo documentam e encarnam a estética de colagem "high-low" e velho-novo, incluindo "álbuns de tom", semelhantes a scrapbooks (justapondo, por exemplo, imagens de senhoras vitorianas cheias de fru-frus com outras de clubbers do século 21 no Brooklyn) ou, ainda, outro álbum ilustrando a criação da animação falsamente vitoriana, de aspecto irregular, nos créditos de abertura.

E há ainda os itens de papel usados para encenar o drama real da vida de Emily: sua escrita.

​Emily Dickinson morreu em 1886 aos 55 anos de idade e publicou apenas um punhado de poemas em vida. Mas em cada uma das três temporadas da série há uma oportunidade de publicação, além de especulações sobre as circunstâncias em que ela ocorreu e como contribuiu para a decisão que Dickinson acabou tomando de não buscar reconhecimento.

A doação à biblioteca de Harvard inclui reproduções de jornais do século 19 (tão fiéis que até incluem manchas de tinta), entre eles o Springfield Republican, no qual Dickinson publicou "A Narrow Fellow in the Grass" ["Pela Grama uma Esguia Criatura"] em 1866.

Também há exemplares do The Constellation, jornal abolicionista fictício (inspirado no jornal de Frederick Douglass, The North Star) que Henry, fictício empregado afro-americano dos Dickinson, imprime clandestinamente no celeiro da residência da família.

Jacobson disse que esses itens já foram mostrados em um curso sobre jornais do século 19. Mas o que pode entusiasmar profundamente os estudiosos de Dickinson são as recriações dos manuscritos dela, incluindo várias dezenas que reproduzem livros costurados à mão, conhecidos como fascículos, que a irmã de Emily, Lavinia, encontrou numa cômoda após a morte da poeta.

"Os materiais ligados a Dickinson são tão frágeis que quase nunca são disponibilizados para ser vistos", explicou Deirdre Lynch, professora de inglês em Harvard que já escreveu sobre a história dos livros e da cultura do fandom literário no século 19. "Quando a coleção chegou à Houghton, foi maravilhoso poder entrar numa sala no primeiro andar e ver os acessórios de papel da série espalhados numa mesa, tridimensionais e em tamanho real."

"A série mostrou com muita precisão as muitas formas nas quais se podia ter contato com trabalhos escritos na América do século 19", ela acrescentou.

Mas a equipe responsável pelos acessórios teve que fazer alguns ajustes. Por exemplo, no final da primeira temporada, quando Emily costura seu primeiro fascículo, ela junta poemas escritos sobre envelopes e pedaços de papel de formas irregulares (materiais que Dickinson de fato utilizava com frequência para escrever, sobretudo nos últimos anos e vida). Os poemas nos fascículos reais, que foram desmontados por editores, foram copiados sobre folhas de papel dobradas.

"Quando vi pela primeira vez os fascículos recriados para a série, fiquei maravilhada", comentou Jacobson. "Mas também estou muito interessada nas vezes em que a série fugiu do registro histórico e por que o fez."

Alena Smith, que originalmente é dramaturga, contou que a ideia da série ganhou contornos claros em sua cabeça em 2015, durante uma visita ao museu, quando se viu no quarto de Lavinia, a irmã de Emily Dickinson. "Senti uma espécie de espírito presente ali", ela explicou. "De repente pude captar o tom que a série teria que ter."

Mas isso talvez não tivesse acontecido, ela disse, se Harvard e o Amherst College (que também possui um acervo extenso de Dickinson e em alguns momentos divergiu de Harvard em relação a direitos autorais) não tivessem se unido em 2013 para criar o Arquivo Emily Dickinson online, que disponibiliza gratuitamente a qualquer pessoa, em qualquer lugar, imagens em alta resolução dos manuscritos da poeta.

Poder ver as palavras de Dickinson como ela as escreveu foi fundamental.

Na segunda temporada, "Dickinson" explorou o impacto das novas tecnologias de comunicação. Os ecos com a revolução atual do streaming são inteiramente intencionais, disse Smith.

Mesmo assim, quando se tratou da doação, Smith (que assinou um contrato de vários anos com a Apple) recusou a oferta de Harvard de aceitar materias digitais, cada vez mais presentes em arquivos do século 21.

Apesar de todo o potencial do modelo streaming, disse Smith, "é um pouco inquietante" criar uma série que só existe na nuvem.

"Para mim, um dos melhores aspectos dessas duas doações é que fica algo concreto que podemos tocar e segurar nas mãos", disse.

Tradução de Clara Allain

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