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'Glória' examina os traumas imperialistas de Portugal nos anos 1960

Série da Netflix mistura cicatrizes coloniais com rede de espiões e retoma temas caros a clássico de Joseph Conrad

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A dominação crescente da Netflix sobre o universo audiovisual tem sido alvo de merecidas críticas, mas é inegável que as séries internacionais ganharam outra visibilidade graças ao streaming.

A dimensão política de produções como a israelense "Fauda" ou a sul-coreana "Round 6" é inegável. Elas parecem concebidas para divulgar uma ideia ou promover uma estética que, depois, é refletida em outros produtos culturais. As ambições industriais dessas séries comprometem a qualidade do roteiro, que parece diluído para se tornar mais palatável para o público global da Netflix, por definição ignorante sobre os meandros da realidade de cada país. Às vezes vemos a série e não sabemos se estamos diante de uma criação artística, de uma operação de marketing, ou de ambos.

Tiago Guedes não parece minimamente preocupado com essas questões. O realizador de "Glória" larga o espectador no Ribatejo, a faixa semidesértica que liga Lisboa à Espanha no miolo de Portugal.

Sua trama mistura temas como os traumas das guerras coloniais, o fascismo ibérico, a Guerra Fria e a barbárie da tortura e da opressão feminina no salazarismo. Tudo isso é narrado através de viagens de carro, pausas no trabalho e fins de noite morosos.

"Glória" proporciona uma viagem lenta e contemplativa a um lugar no meio do nada que de repente se tornou o centro do mundo.

"Glória" tem como protagonista João Vidal, interpretado pelo magnífico Miguel Nunes. Filho de um oficial do regime de Oliveira Salazar, ele adere à KGB soviética depois de uma passagem pelo norte de Angola, onde sentiu na pele a inanidade da guerra colonial.

Engenheiro de família nobre, o espião privilegiado consegue um cargo na rádio Retransmissão, ou Raret, cujas antenas colossais eram responsáveis por disputar as ondas na Europa ocidental com a rádio Moscou.

Enclave americana com as suas residências, ruas, clínicas e guardas, a Raret era comandada pelo casal James Wilson e Anne O'Brien, que, com suas sobrancelhas polidas e suas mãos de ferro, tentavam inculcar o sonho americano na terrinha. Perdida no meio de um jogo de espiões, a população da região alternava entre as celebrações do Quatro de Julho e as chegadas e partidas do ônibus que levava os filhos da terra vivos e os trazia de volta aos pedaços.

O povoado de "Glória" e a Raret encapsulam Portugal na encruzilhada da Guerra Fria e da descolonização. A série começa pouco depois do acidente de Oliveira Salazar que levou Marcello Caetano a assumir a presidência do Conselho em 1968.

Os oficiais do regime se dividiam entre o imperativo de prosseguir com uma guerra cada vez mais internacionalizada em três frentes africanas, Guiné, Angola e Moçambique, e a necessidade de pensar alternativas ao colonialismo para garantir a sobrevida do regime numa Europa em plena transição política. A população rural, empobrecida e iletrada, se contentava em celebrar os sacrifícios, contemplar o suicídio e preparar o exílio.

Tiago Guedes não se acomoda na melancolia e insiste na folia que tomava conta dos espíritos encharcados em café, tabaco e álcool. Resgatando as temáticas de Joseph Conrad em "O Coração das Trevas", ele mostra como o português colonizador também é um colonizado que vive sob o jugo americano e soviético apesar dos oficiais salazaristas acreditarem, com a estupidez provinciana de um ministro bolsonarista falando sobre a China, que os Estados Unidos "também dependem de Portugal" por causa de um par de antenas de rádio.

"Glória" executa a difícil missão de congregar o local, o nacional e o global num mesmo episódio, evitando a sensação de fragmentação recorrente em outras séries que tentam ganhar tempo dedicando episódios inteiros a tramas secundárias. "Glória", no fundo, não é uma série. É um filme cerebral que a Netflix cortou aos pedaços para encaixar no seu modelo de negócio.

Glória

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Miguel Nunes e Matt Rippy
  • Criação Pedro Lopes
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