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Lya Luft não narrou luta do feminismo, mas expôs condição da mulher

Livros da escritora, com narrativas abismais e linguagem fluente, refletem trajetória de intelectual inquieta

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Luís Augusto Fischer

Professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor, entre outros livros, de "Literatura Brasileira - Modos de Usar" (L&PM) e "Duas Formações, Uma História" (Arquipélago). Lançará no próximo ano um estudo que descreve o processo de consagração do modernismo paulista, pela Todavia

Não foi apenas uma reviravolta, mas várias. Na trajetória de Lya Luft, que morreu nesta quinta-feira (30), é possível enumerar um conjunto impressionante de transformações. Nascida em família germânica, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, uma das cidades mais marcadas pela presença alemã no país, teve como primeira língua o alemão. Numa época em que a definição religiosa era relevante e quase inamovível, Lya converteu-se do luteranismo ao catolicismo.

Aluna de letras, apaixonou-se por um professor também germânico, mas religioso, o irmão marista Arnulfo, que por esse amor abandonou o hábito e retomou seu nome de batismo, Celso Pedro Luft. Era um talentoso professor e pesquisador, que com os anos se converteria num dos maiores nomes dos estudos de gramática no Brasil, estrela de uma geração que transitava do antigo paradigma da filologia para o novo mundo da linguística, ao lado de Antônio Houaiss e Evanildo Bechara.

A escritora Lya Luft em sua residência em Porto Alegre, em fotografia de 2010 - Edison Vara/Folhapress

Lya transformou-se em professora universitária em faculdade de Porto Alegre, onde vivia, enquanto criava seus três filhos com Luft. Era cronista e poeta, conectada ao mundo das impressões sensíveis, mas relativamente anódinas. Escreveu e publicou também contos. Praticou igualmente a tradução, do alemão e do inglês (entre os autores estavam Virginia Woolf, Thomas Mann e Doris Lessing) ao português. Até que publicou um romance, "As Parceiras".

Era 1980, outro momento do feminismo, quando essa luta era muito menos disseminada e, em alguns sentidos, mais ousada. O enredo punha em questão uma série de fantasmas da condição feminina do tempo, que ganhavam enunciação concentrada, sombria, até mesmo cruel. Não havia no texto nem autopiedade, nem ataques à posição —ou ao que hoje se trata como a opressão— masculina. Era uma narrativa abismal, em linguagem fluente mas atravessada por figuras e cenas metafóricas, de vez em quando alegórica.

Lya ganhava outra recepção, em outra proporção. Não levantava na ficção a bandeira feminista, como nunca parece mesmo ter levantado, mas sua ficção dali por diante sempre carregou um centro nervoso ligado a temas decisivos para a condição feminina, ainda que não exclusivos dela, como a sucessão das gerações e os estigmas da mulher, ao lado de uma certa ideia de transcendência em relação às contingências imediatas da vida —uma perspectiva metafísica, para dizer de modo simples.

Talvez se possa dizer, olhando em retrospecto o conjunto de sua trajetória, que de "As Parceiras" em diante Lya explicitou esses temas ou esses dilemas para nunca mais perdê-los de vista, e ao mesmo tempo mostrou que, em alguma medida, estavam presentes já, em forma amena e dispersa, na poeta e cronista anterior.

As ficções que se seguiram davam passos adiante na mesma direção, em narrativas longas e também curtas. Talvez o rodrigueano "Reunião de Família" seja o ponto alto dessa fase. Em suas cada vez mais frequentes aparições na imprensa, em falas públicas e entrevistas, Lya ia expondo suas ideias e definindo suas parcerias. Sua afinidade com o conterrâneo gaúcho Caio Fernando Abreu, por exemplo, por um lado estendia um inesperado gesto de simpatia pela geração hippie, e por outro tirava o "maldito" do lugar.

Tudo então estava reconfigurado em sua vida, mas um novo abismo se abriu quando ela se separou de Luft para viver com Hélio Pellegrino. Figura de proa na vida intelectual brasileira, referência na luta contra a ditadura, mineiro que vivia no Rio de Janeiro, Pellegrino foi fundador do PT e liderou toda uma discussão sobre o papel da psicanálise na vida brasileira, na redemocratização. Não é que o ex-marido fosse de direita, mas era um acadêmico, por assim dizer, ausente do debate político imediato. Lya virou outra ou já estava nesse lugar antes? Desde sempre?

Lya e Hélio viveram juntos até a morte dele. Alguns anos depois, ela retornou a Porto Alegre para voltar a viver com o primeiro marido, até a morte deste.

É certo que essas mudanças, inclusive geográficas, abriram novos horizontes. A obra de Lya abriu-se para retomar a poesia, a crônica, o conto. Seu maior sucesso, "Perdas e Ganhos", de 2003, é uma espécie de mescla desses registros —o livro vendeu quase 1 milhão de cópias e passou 113 semanas no topo das listas de mais vendidos do país. Ela foi traduzida para outras línguas, enquanto peregrinava em feiras e festivais de literatura, onde palestrava com grande desenvoltura, nunca renegando nenhuma passagem de sua vida, mas, ao contrário, acolhendo essas vivências como marca consistente.

No começo dos anos 2000 passou a assinar coluna na revista Veja, naquele momento a mais importante semanal brasileira, na qual consta ter sido a primeira mulher titular de espaço. Virou best-seller, mantendo os temas e questões de antes e abordando também questões da atualidade política e social, mas agora sendo lida por muito mais gente e produzindo textos de menor força do que aqueles dos anos 1980 e 1990.

Teve um terceiro e definitivo casamento, enterrou tragicamente um de seus filhos, continuou produzindo ficção, crônica, poesia, ensaio. Em textos desse período recente, expôs uma visão política conservadora. Escreveu muitas reminiscências pessoais, muitas delas ligadas a sua infância, em que despontam a figura do pai, advogado e grande leitor, e uma menina Lya sempre inquieta, curiosa, desejosa de coisas indizíveis que, creio, ela alcançou viver.

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