Descrição de chapéu
Frank Bruni

Por que Joan Didion era um gênio que reluzia ao formular sentenças

Filme 'The Center Will Not Hold' mostra que, a despeito da imagem que ela cultivava, podia ser prática e nada sentimental

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Frank Bruni
The New York Times

Costumo culpar minha atenção dispersa, mas sentenças isoladas sempre me entusiasmaram tanto quanto livros inteiros. Uma das minhas favoritas é o início de um ensaio que li mais de 20 vezes em 30 e poucos anos. "Certa vez, em uma temporada seca, escrevi em letras bem grandes, ocupando duas páginas de um caderno, que a inocência acaba quando a pessoa perde a ilusão de que gosta de si mesma", ele diz.

Foto em preto e branco mostra três mulheres sentadas
Joan Didion (à esq.), com Abigail McCarthy e Quintana Roo, em 1º de setembro de 1977 - Teresa Zabala/The New York Times

Isso planta uma ideia provocante —a de que a humilhação é a porta de entrada para a maturidade. Mas o que realmente me pega é a ordem das palavras, o acúmulo de todas aquelas frases prepositivas perto do começo. Eu estava na universidade quando li a frase pela primeira vez e pensei comigo mesmo que um professor ranzinza de redação poderia perfeitamente circular em vermelho o percurso sinuoso entre "escrevi" e "que".

E também pensei que a sentença era perfeita. Sua sinuosidade era pura música. E a música tinha uma qualidade deliberadamente pomposa, sinalizando o constrangimento da autora –"letras grandes", "duas páginas". Estava claro que se tratava de uma pessoa que se levava muito a sério —e estava totalmente consciente disso, de um jeito encantador.

Sintaxe e sensibilidade –ninguém as combinou tão bem quanto Joan Didion, autora daquele ensaio, "On Self-Respect", e muitos outros. Ela é tema do documentário, "Joan Didion: The Center Will Not Hold", que revela que, na década de 1960, quando ela trabalhava na revista Vogue, os editores da revista decidiram publicar uma reflexão sobre o autorrespeito antes de se preocuparem em escolher quem se encarregaria de escrever tal reflexão. Só mais tarde eles selecionaram Didion, que ainda estava na casa dos 20 anos. Ela produziu o texto sob encomenda e, mesmo assim, escreveu um ensaio considerado, com razão, como uma de suas obras-primas.

"The Center Will Not Hold" não é uma obra-prima. Mas é fascinante, em parte por causa de migalhas dispersas de informação como essa. Dirigido por Griffin Dunne, sobrinho de Didion, que incluiu trechos de entrevistas com ela, o documentário mostra que, a despeito da imagem que ela cultivava, a de uma pária nervosa sempre à mercê de seus humores e do vento Santa Ana, ela podia ser implacavelmente prática e nada sentimental. Dunne então pergunta como ela se sentiu quando, ao trabalhar em uma reportagem sobre a contracultura de San Francisco, ela encontrou uma criança de cinco anos chapada de LSD. "Foi ouro puro", ela respondeu. "Um escritor vive por momentos como esse."

Ela foi casada por 40 anos com um tio do documentarista, o escritor John Griffin Dunne, cuja morte em 2003 foi o motivo de "O Ano do Pensamento Mágico", um esplêndido livro de memórias da escritora. Griffin pergunta se o marido tinha se incomodado com um ensaio franco que ela tinha escrito décadas antes sobre problemas no casamento deles.

"Ele editou o texto", ela responde, explicando que, como escritores, ambos compreendiam, que "você tem de usar seu material". "Você escreve o que você tem a dizer", ela diz. "E aquilo por acaso era o que eu tinha a dizer naquele momento."

O casal colaborou em roteiros para cinema. Warren Beatty os visitava em sua casa em Malibu, nos Estados Unidos, e flertava com ela. Em público, Didion se escondia por trás de óculos escuros e falava baixinho. Nas fotos, o ângulo de seus quadris e o de seu cigarro pendendo dos lábios eram sempre perfeitos.

Mas a sabedoria do documentário, disponível na Netflix, é que ele enfatiza a prosa em preferência à pose e retorna constantemente às palavras da escritora.

Elas são lidas em voz alta. Aparecem na tela, na tipologia original em que foram publicadas. São o motivo para que as pessoas se interessassem por tudo o mais e para que suas coleções de ensaios, "Rastejando Até Belém" e "O Álbum Branco" estivessem nas estantes de todo mundo que aspirava a ser jornalista, quando eu era moço.

Os volumes incluem uma sentença sobre o despertar. "Foi naquele ano que comecei a descobrir que nem todas as promessas seriam cumpridas, que algumas coisas eram irrevogáveis e que cada evasão e cada procrastinação, cada erro e cada palavra, tudo aquilo, contava."

E mais uma sentença, sobre a universidade na década de 1950. "Suponho que estou falando sobre exatamente isso: a ambiguidade de pertencer a uma geração que desconfia dos picos políticos, da irrelevância histórica de crescer convicto de que o coração das trevas está não em algum erro de organização social, mas no próprio sangue do homem."

E isso, sobre o final da década de 1960. "Eu supostamente estava informada sobre a trama, mas tudo que sabia era o que estava vendo: imagens súbitas em sequência variável, imagens sem ‘significado’ a não ser seu arranjo temporário, não um filme, mas uma experiência de ilha de edição."

Hoje ainda mais do que quando a carreira de Didion decolou, transformamos os escritores de sucesso e outros artistas em emblemas de suas eras, adereços nos dramas públicos, curiosidades divorciadas de qualquer realização específica. E eles frequentemente conspiram para isso.

Mas usualmente chegam a esse ponto apenas se existir algo de substancial, para começar, e perduram apenas se o que quer que exista seja precioso. Se for ouro. Didion reluzia, na página e no documentário de seu sobrinho, não porque tivesse propensão à celebridade, mas porque era um gênio ao formular sentenças.

Tradução de Paulo Migliacci

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.