Descrição de chapéu Artes Cênicas

Andréa Beltrão e Marieta Severo expõem horror de Bolsonaro ao reabrir teatro

Espaço no Rio de Janeiro terá instalações de Bia Lessa que recuperam trajetória do Poeira e criticam o Brasil atual

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As atrizes Marieta Severo e Andréa Beltrão, sócias-fundadoras do Teatro Poeira, no Rio de Janeiro Lucas Seixas/Folhapress

Rio de Janeiro

Para os cariocas, achar o sobrado onde funciona o teatro Poeira já é tarefa fácil. É ali, na rua São João Batista, em Botafogo, logo ao lado do cemitério, que o prédio fica. Fechado no início da pandemia, quando completou 15 anos, o Poeira planeja reabrir suas portas na terça-feira da semana que vem com uma exposição para celebrar o aniversário. Idealizada pelas donas do teatro, as atrizes Andréa Beltrão e Marieta Severo, a mostra fará do passado uma novidade.

"Antes e Depois do Espetáculo", organizada por Bia Lessa, olhará para o retrovisor, contando uma nova história do Poeira. Óculos enterrados em pó de enxofre, fragmentos de textos bordados em pano de chão, taças de estanho com sopa de letrinhas. Nenhum espetáculo será identificado explicitamente. As 166 peças que passaram por aquele teatro serão (des)organizadas em instalações, a fim de proporcionar ao espectador um novo enredo desde a fundação do lugar.

"Todos os acontecimentos importantes estarão lá de alguma forma. Conforme a gente entra no ambiente, entendemos como tudo aconteceu", afirma Beltrão.

As atrizes Marieta Severo e Andréa Beltrão em frente ao Teatro Poeira, em Botafogo, no Rio de Janeiro, em 2005 - Ana Carolina Fernandes - 17.jun.2005/Folhapress

Naturalmente, os objetos ganham plasticidade num labirinto que vai das coxias aos camarins, passando pelo café. "Eu destacaria a maneira como a Bia representou as pessoas que visitaram o teatro. É muito emocionante, inclusive porque deu muito trabalho", diz Severo. Trezentos mil palitos de fósforo serão suspensos no teto, indicando a presença física de cada espectador do Poeira nesses 15 anos.

As comemorações servirão de mote para uma série de oficinas gratuitas, que terá a presença de nomes como os diretores teatrais Felipe Hirsch e Gilberto Gawronski. As atrizes contaram ainda estar trabalhando na concepção da peça "O Espectador Condenado à Morte", do dramaturgo romeno Matei Visniec, com estreia marcada para maio.

Durante a exposição, a fachada, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, será coberta por imagens da vida real, com fotografias de queimadas e de um lixão, que contrastam com a graciosidade do prédio e apontam para o Brasil de Bolsonaro.

Os temas candentes da política nacional logo fazem Severo interromper a entrevista, em sua casa, na Gávea. "Fizemos todo o Poeira com o nosso dinheiro. Mas não temos nenhum problema com a Lei Rouanet, a gente só tem a favor. Todos os países do mundo têm incentivo fiscal para a indústria cultural, que rende milhões e emprega milhões", ela afirma. "Essa secretaria de Cultura que está aí não entende nada." As atrizes declaram voto em Lula nas eleições de outubro sem pestanejar.

Em 2019, a Petrobras, então apoiadora dos programas de formação de atores do teatro, mudou os critérios para a concessão do patrocínio, retirando a verba destinada ao Poeira. A realização dos projetos, que promoviam cursos de teatrólogos renomados do Brasil e do exterior, ficou ainda mais difícil.

Na época do ocorrido, redes bolsonaristas comemoraram o suposto "fim da mamata". Severo, hoje com 75 anos, diz que comentários do tipo não são motivados só por ignorância. "É má intenção. Conseguiram colar essa pecha na gente. A mamata deles continuou. Só não é desvendada porque eles se protegem."

Além do investimento das proprietárias, a bilheteria das peças consegue igualar o custo de manutenção do Poeira, mas segundo Beltrão e Severo raramente há lucro. Pouco antes da pandemia, as sócias bancaram novas oficinas. Agora, terão patrocínio do banco Itaú para os projetos pedagógicos, que em outros tempos chegaram a receber José Sanchis Sinisterra, expoente do teatro espanhol, e a diretora francesa Ariane Mnouchkine, fundadora do Théâtre du Soleil.

Comandar o Poeira em meio à chamada "guerra cultural" é um desafio. Para elas, o ambiente político afeta pessoalmente os artistas, desestimulando qualquer criatividade. "Nunca se falou tanto na palavra ‘democracia’, por quê? Porque ela está sendo ameaçada todo santo dia. Temos que relembrar todo dia o que é a democracia, vendo as instituições ruindo por dentro. Esse ano é o ano de berrar, gritar, tentar convencer, tentar ver quem são esses 20% da população. Qual a alma de vocês para apoiar isso? Eu tenho medo", diz Severo.

Beltrão, por sua vez, confessa não ter se desgrudado da tevê durante as sessões da CPI da Covid, mesmo sem fôlego para a enxurrada de notícias –muitas vezes falsas– vindas do mundo político.

A derrocada econômica do Rio de Janeiro é outro fator delicado para a gestão do Poeira. Com a falta de patrocínio para peças, elas assistem ao naufrágio das salas de teatro da cidade.

"Witzel, Crivella, Cláudio Castro são tão nocivos e insignificantes ao mesmo tempo. Agora, não tenho mais essa questão de ‘se é religioso é careta’. Chega um momento em que uma ausência total do Estado em relação aos direitos dos habitantes da cidade abre um espaço que precisa ser ocupado", comenta Beltrão.

Ir para outra cidade, porém, é carta fora do baralho para a atriz. "Eu amo esse bagulho todo", diz. Deixar o país também está descartado. "Ficam falando ‘ai, se o Bolsonaro for reeleito, eu vou embora’. Eu fico olhando assim para a pessoa e digo ‘boa viagem’."

A situação política e econômica não é o único obstáculo para as fundadoras do Poeira. Elas dizem não saber exatamente como atrair um jovem viciado em Netflix para uma peça. Ambas, aliás, se preocupam com o excesso de tecnologia no cotidiano das pessoas e não frequentam as redes sociais.

Beltrão, por exemplo, só ficou sabendo que virou meme por terceiros. Nas montagens em vídeo que abundam nas redes sociais, ela aparece ao seu melhor estilo boquirroto, falando barbaridades interpretando a Sueli, do seriado "Tapas & Beijos", e a Marilda, de "A Grande Família".

Em alguns memes, falas da própria atriz em entrevistas televisivas são justapostas a cenas de ficção. Ao que parece, o estilo libertário e irreverente de Beltrão ajudou a atriz, hoje com 58 anos, a se conectar com os jovens —mesmo que ela diga rejeitar o lugar de espelho para novas gerações.

De todo modo, seu humor ajudou a estabelecer a amizade com Severo, desde os primeiros encontros, durante as montagens das peças "A Estrela do Lar", em 1989, e "A Dona da História", nove anos depois. No início dos anos 2000, a dupla passou a sentir necessidade de criar um espaço intimista, capaz de receber peças de natureza mais experimental.

Severo conta que, na época, ela estava cansada de usar microfones nos teatros imensos onde se apresentava. Entre uma cena e outra de "A Grande Família", ela e Beltrão, ou Dona Nenê e Marilda, cochichavam as novidades do mercado imobiliário carioca. Com o caderno de classificados em punho, saíam desembestadas num jipe preto, percorrendo as ruas de Copacabana e Botafogo, protagonizando cenas que poderiam estar no seriado da Globo.

As atrizes chegaram ao endereço desejado por indicação do dramaturgo Aderbal Freire-Filho, marido de Severo. Além da bela fachada, o prédio tinha um quintal, bem ao ideal de espaço vazio proposto pelo diretor inglês Peter Brook. No vão, elas afirmam, infinitas poéticas poderiam ser desenvolvidas, abarcando uma grande diversidade de tramas.

Dessa forma nascia o Poeira, com uma arquitetura versátil que possibilita a configuração de um teatro de arena ou um palco à italiana. Para a estreia, Freire-Filho adaptou "Sonata de Outono", de Ingmar Berman. Severo e Beltrão foram mãe e filha. "Deu uma sensação de absurdo. Será que a luz vai acender? As pessoas virão?", lembra Severo. Na abertura das oficinas, Zé Celso Martinez Corrêa foi ao teatro e resolveu não dar uma palestra, mas promover uma celebração dionisíaca, espalhando vinho nos quatro cantos do prédio.

Freire-Filho continuou dirigindo montagens no Poeira. Em 2009, Severo e Beltrão foram carpideiras na peça "As Centenárias", que, no ano que vem, será adaptada para o cinema. No mesmo ano, o diretor mergulhou no mar de Herman Melville, adaptando "Moby Dick" para o teatro de 180 lugares.

O ano também marcou a compra de uma segunda sala, vizinha ao prédio, com só 50 poltronas. O Poeirinha, onde peças ainda mais experimentais são encenadas, era antes uma das dezenas de oficinas mecânicas de Botafogo.

"Era a oficina do seu Luís", diz Beltrão.

"Não", sussurra Severo, "Ele era locatário. Ele não pagava."

"Marieta, não fala mal do seu Luís, eu adorava o seu Luís. Ele avisava que tinha rato no lugar e também que o Queimadinho morava lá", acrescenta Beltrão.

Queimadinho era um morador em situação de rua, que realizava pequenos furtos no bairro. Ele resolveu se abrigar no segundo andar da oficina, deixando o local no fim da obra. "Somos muito apegadas ao Queimadinho. Ele era nosso protegido. Tinha colchonete, latinha de cerveja, garrafa d’água. Deixamos ele dormindo, era uma relação de respeito mútuo", afirma Beltrão, em tom de brincadeira.

Outras peças marcariam a história do Poeira –e do Poeirinha– como "O Púcaro Búlgaro", de 2007, e "Jacinta", de 2012, em que Beltrão encarnou a pior atriz do mundo. As duas peças tiveram, como antes, direção de Freire-Filho, figura onipresente na história do teatro. Em 2020, ele sofreu um AVC, que o deixou com sequelas até hoje.

No ar em "Um Lugar ao Sol", novela da faixa das nove, Severo vive Noca, uma avó que dá conselhos amorosos à neta. Mais um papel marcante para quem viu, de "Todas as Mulheres do Mundo", de 1967, a "Bye, Bye, Brasil", de 1979, o papel da mulher na ficção —e na vida real— mudar radicalmente. "Acompanhei todas as fases do feminismo, sempre apoiei, acho muito bonito o desenvolvimento do movimento. Minhas netas já têm as respostas na ponta da língua", ela afirma.

Sobre as acusações de machismo ao remake de 2020 de "Todas as Mulheres do Mundo", com uma trama centrada no personagem galinha, ela diz sentir preguiça. "Eu assisti e não tive essa leitura."

Também em "Um Lugar ao Sol", Beltrão interrompe a amiga, encarnando o meme. "Ai, deixa a pessoa comer quem ela quiser! Vamos todos nos comer! A gente está nessa vida também para ter prazer!"

Projeto Antes e Depois dos Espetáculos: Exposição Temática – 15 anos Teatro Poeira

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