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Livros LGBTQIA+

'Destransição, Baby' narra família formada por trisal trans-cis

Romance de estreia da americana Torrey Peters é movido a questões de gênero

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Naná DeLuca

Jornalista da Folha e mestre em letras pela USP

Destransição, Baby

  • Preço R$ 54,90 (320 págs.); R$ 38,40 (ebook)
  • Autor Torrey Peters
  • Editora Tordesilhas
  • Tradução Luisa Geisler

Em um dia ensolarado num parque de Nova York, Reese e Ames reencontram-se três anos após o fim de seu namoro. Ames tem uma notícia e uma proposta: ela será pai. Engravidou sua chefe e amante, Katrina, e quer que Reese faça parte da família. De fato, Ames não consegue imaginar ser pai sem Reese ao seu lado e ao lado de Katrina.

A concepção de um bebê por esse triângulo afetivo trans-cis é o que conduz o romance de estreia de Torrey Peters, "Destransição, Baby" (ed. Tordesilhas), cuja originalidade está tanto na premissa quanto na costura minuciosa do enredo.

Dividido em capítulos temporalmente marcados como "antes" ou "depois da concepção", o leitor ora acompanha o desenrolar da proposta de Ames, ora mergulha nas memórias e experiências de cada personagem, de forma que é capaz de compreendê-los profundamente em meio a uma situação, em si, rocambolesca.

Reese é uma mulher trans que deseja ser mãe e, também, gostaria de não precisar explicar por quê (afinal, ela afirma, mulheres cis não precisam se explicar quando escolhem a maternidade). A proposta de Ames, portanto, permite que Reese vislumbre concretizar esse sonho.

Torrey Peters, autora de 'Destransição, Baby'
Torrey Peters, autora de 'Destransição, Baby' - Divulgação

Já Katrina é uma mulher cis divorciada de 39 anos, para quem a gravidez é um choque. Quer ser mãe, mas não solo, e também não quer ser só uma "incubadora" para a família queer de seu amante. Ela em nenhum momento descarta a possibilidade de abortar (assunto tratado no romance, a todo tempo, como um direito inquestionável de quem engravida).

Ames, por sua vez, é a personagem mais complexa do livro tanto pela forma como vive sua identidade de gênero quanto pelo acúmulo de traumas.

É uma mulher trans que "cansou de viver como trans". Após sofrer agressões e ser traída por sua namorada, Reese, Amy interrompe a hormonização, muda o nome para Ames e passa a viver como homem. Faz, assim, a destransição. Ao descobrir a gravidez de Katrina, apavora-se com a possibilidade de ser pai, "a não ser que conseguisse encontrar um jeito de fugir da força gravitacional da família nuclear".

Junto, o trio passa a buscar consensos para construir uma família "destradicional", em que duas mães e um Ames criam uma criança e encontram, enfim, a sua própria versão do "normal".

Para narrar essa busca, o romance se deixa atravessar por múltiplas questões de gênero (masculinidade, feminilidade, ser trans, ser cis, ser LGBTQIA+, ser hetero, hormonização, patriarcado, violência, adultério, aborto, heteronormatividade etc), que são habilmente discutidas de maneira demasiadamente humana: sem superficialidades ou chavões políticos, mas como partes integrantes das vidas de Reese, Ames e Katrina.

As condições colocadas por gênero e sexualidade são inescapáveis para as personagens —as três altamente conscientes dos lugares que ocupam socialmente. Reese, Ames e Katrina, cada uma à sua maneira, o tempo todo negociam quem são (ou gostariam de ser) e o que a sociedade é. Ou, como pensa Reese, entre "o caos que separa o que se pode desejar e o que se pode dizer".

É na mistura de todos esses elementos, salpicados pela cultura pop e pela efervescência das redes afetivas entre pessoas T, que "Destransição, Baby" retrata a experiência trans de uma geração, aquela que Ames define como forjada "de fúria e trauma", privada, pela pandemia de HIV da década de 1980, de "anciãs" —mulheres trans mais velhas capazes de acolher as mais jovens e transmitir o "como viver trans".

Por fim, é preciso destacar a tradução cuidadosa de Luisa Geisler, que incorpora o linguajar LGBTQIA+ de forma orgânica, com boas escolhas de gírias e expressões em português, o que torna o falar dos personagens realista e, sobretudo, familiar, ampliando o efeito de intimidade com cada personagem.

A travessia de Ames, Reese e Katrina abre ao leitor diferentes dimensões do humano e o convida para adentrar um mundo que talvez lhe seja estranho, talvez nem tanto, mas do qual é impossível sair ileso. Seja o leitor trans ou cis.

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