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Cinema

Em 'Mães Paralelas', Almodóvar encara o fantasma do fascismo

No esplendor de sua maturidade, diretor parece fechar um círculo nada secundário de sua belíssima obra

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Mães Paralelas

  • Quando Estreia na qui. (3) nos cinemas e em 18 de fevereiro na Netflix
  • Elenco Penélope Cruz, Milena Smit, Israel Elejalde
  • Produção Espanha, 2021
  • Direção Pedro Almodóvar

"Tudo Sobre Minha Mãe" já era uma homenagem à maternidade. Em "Mães Paralelas", elas se duplicam, se tornam duas –Janis, vivida por Penélope Cruz, e Ana, personagem de Milena Smit. As duas são mães solteiras, as duas terão seus filhos na mesma maternidade, no mesmo dia.

Janis ficou órfã cedo, a mãe, uma hippie, morreu. Quanto ao pai, nunca soube quem era. Ana conheceu o pai bem o bastante para desprezar o homem. Hoje vive com a mãe, uma atriz dedicada em tempo integral à sua carreira e em tempo quase nenhum à filha.

Janis é fotógrafa e já mulher madura. Ana nem chegou à maioridade. Ambas, porém, apontam para o futuro pela procriação. Eis o que é próprio das mães, antes de tudo —zelar pelo futuro, cuidar de seus filhos.

Apesar das diferenças, as duas se aproximam. Mas isso é só uma parte da história, e talvez seja essa a novidade principal de "Mães Paralelas". Mais do que paixões devastadoras, amores insensatos, choro, busca, perversidade, existe aqui um passado que volta à cena. Não o passado pessoal de, por exemplo, "Volver", mas o da Guerra Civil Espanhola.

Pedro Almodóvar é um cineasta do feminino. As mulheres são fortes, elas sobrevivem, amam, sofrem, fazem idiotices, mentem e, sobretudo, seguram todas as barras. Aquelas de que os homens fogem. Não por acaso, em "Mães" existe a afirmação de clareza insofismável –as verdadeiras heroínas da guerra são as viúvas.

Mas por que esse retorno à guerra? Esse fantasma que assombrou por tantos anos a Espanha não foi sepultado quando o rei Juan Carlos subiu ao trono, após a morte de Franco? Ao menos essa era a intenção. Ao menos se pode viver essa fantasia até que Juan Carlos se revelasse um malandro digno dos homens dos filmes de Almodóvar (alguns deles, em todo caso).

É entre essas e outras que Janis e Ana dão à luz. Elas já não vivem aquelas mentiras tão pessoais de outros filmes. Estamos no cenário real da Espanha contemporânea –o não dito, o reprimido, os horrores do franquismo e os desastres da guerra.

Logo no início, Janis fotografa o antropólogo Arturo, papel de Israel Elejalde. Deseja que ele vá à aldeia de sua família onde, sabe, existe a cova rasa onde os fascistas enterraram, no início da guerra, dez homens que haviam matado. Um deles, o bisavô de Janis.

Arturo explica a ela que os trabalhos arqueológicos estão suspensos, foram tirados do orçamento por Mariano Rajoy, o premiê conservador. Em vista disso, será necessário apresentar o projeto a uma fundação, esperar o resultado etc.

Nesse meio tempo os dois namoram. Desse namoro nasce o bebê de Janis, que será mãe solteira como Ana. Do encontro entre Janis e Ana e suas decorrências resultarão novas mentiras, de que não convém falar aqui, porque elas nutrem a trama. Mas, com toda franqueza, elas são pequenas perto do essencial –o horror.

Ao contrário de tantos cineastas espanhóis que, de maneira mais ou menos clara aderiram ao cinema de horror, Almodóvar se manteve afastado dele, fiel ao melodrama (eventualmente cômico).

Chegando a "Mães Paralelas" ele se mostra bastante pronto a encarar o fantasma do fascismo. Ao mesmo tempo, fecha um círculo de sua obra e deixa clara sua extensão. Aqui é de um cinema político, no sentido estrito, que se trata, pois esse mundo de homens pusilânimes, bêbados, estupradores, traiçoeiros —resumindo, esses homens que não valem um tostão perto de tantas mulheres valentes (e cujas mentiras são, não raro, uma face dessa valentia)— têm origem no horror franquista, em suas mentiras e perversões.

Se as mulheres vivem as mentiras do presente como se pisassem em brasas, elas acreditam em todo caso no futuro —e por isso têm filhos. A elas cabe também fazer um luto de anos e anos, caso das parentes de Janis que vivem na aldeia à espera do momento de pelo menos reconhecer, sepultar e fazer justiça aos que foram assassinados.

Nem todas as mulheres, porém, se salvam. A mãe de Ana, que vem da burguesia, sabe bem dar as costas ao passado (o marido) e ao presente (a filha) em favor de sua realização individual. Se diz apolítica. A rigor, se contenta com a salvação pessoal.

Para que tudo isso constituísse um perfeito diagnóstico dos últimos 85 ou 90 anos da Espanha almodovariana, faltou apenas uma menção explícita a Juan Carlos, cujos pecados resumem os caminhos do machismo espanhol. Se a menção a ele acontecesse talvez ficasse um pouco evidente demais.

O essencial é que esse Almodóvar, no esplendor de sua maturidade, parece aqui fechar um círculo nada secundário de sua belíssima obra.

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